A Casa Florescer 1, que abriga 30 mulheres travestis e transexuais no Bom Retiro, no centro paulistano, abriu as portas na última quinta-feira (26) para o lançamento do Estudo Plural, uma pesquisa inédita que tem por objetivo estimar a prevalência e o prognóstico de covid-19 e infecções sexualmente transmissíveis (IST) em pessoas trans, trabalhadores do sexo e do entretenimento adulto em São Paulo. De iniciativa do Instituto Cultural Barong e parceiros, o estudo iniciou o recrutamento com 22 pessoas na Casa Florescer 1 e encontrou no primeiro dia 20% de prevalência para a covid-19.

“O Estudo Plural nasce a partir de uma questão que surgiu com as observações in loco, com a possibilidade de interação entre os medicamentos para a harmonização hormonal de pessoas transexuais, de trabalhadoras sexuais e sua exposição à covid-19 e às IST. A gente testava HIV, sífilis, hepatites, mas não tinha teste de covid para oferecer; e essas pessoas continuaram a trabalhar, mesmo durante a maior restrição de mobilidade na pandemia, entre março e agosto de 2020”, disse a ativista Marta McBritton, presidente do Barong.

A pesquisa reúne parcerias com a universidade, gestão da saúde, startup de soluções em saúde, além de outras organizações da sociedade civil. Por meio do Programa USP Diversidade estão a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) e a Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (EERP-USP); o Núcleo de Doenças Sanguíneas e Sexuais (NDSS) do Centro de Virologia do Instituto Adolfo Lutz (IAL), o Centro de Referência e Treinamento em IST/Aids (CRT-DST/AIDS-SP) da Coordenadoria de Controle de Doenças da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, e a startup GermSure.

“A prevalência estava muito alta na ação de quinta-feira, mostrando que a população trans realmente está mais suscetível para reinfecções de covid-19”, afirmou o professor Carlos Arterio Sorgi, da USP de Ribeirão Preto, acrescentando que o maior diferencial do Estudo Plural é a união de diferentes instâncias. “A pesquisa engloba a parte privada, pública, acadêmica e de ONGs. E isso é o mais importante, a gente conseguir colocar todo mundo em uma só equipe e com um único objetivo.”

A abrangência interdisciplinar do projeto também chamou atenção do professor Steven Butterman, da Universidade de Miami, na Flórida, e especialista em estudos de gênero e estudos latino-americanos com ênfase em Literatura Brasileira.  “É um máximo! Tem o envolvimento médico por um lado, têm o elemento social de participação ativista e também a parte bioquímica. Para mim é importante o Estudo Plural valorizar tantas abordagens, geralmente nós habitamos mundos diferentes e temos paredes bem instaladas para gente não se conversar e um projeto assim consegue quebrar e fazer buracos nessas paredes para nós trabalharmos juntos. Num tema tão complicado quanto covid em relação à aids e soropositividade, a gente tem que aproximar tudo que temos em termos de formação, não somente acadêmica, mas também comunitária e ativista’’, afirmou Steven.

De acordo com o professor Steven, o Estudo Plural é algo fascinante, “não é apenas base word ou um discurso hipotético, ele acontece na prática. Não é uma teorização apenas de juntar as forças, é a prática de combinar e trabalhar juntos, juntas e juntes.”

O Estudo

O Estudo Plural foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto. O objetivo da pesquisa também é identificar a prevalência da covid-19 nos corpos de pessoas em transição de gênero. Recentemente a medicina revelou que os homens podem desenvolver as formas mais graves da covid em relação às mulheres, e isto estaria relacionado a baixos níveis da testosterona no corpo. A partir desta evidência, o Estudo Plural quer entender como a covid atua no corpo de pessoas trans que realizam hormonização corporal.

Por meio das análises da biologia de sistemas, o Estudo Plural pretende identificar os níveis plasmáticos de mediadores inflamatórios em 1.500 amostras de pessoas  participantes da pesquisa na cidade de São Paulo. Mediadores inflamatórios são biomarcadores capazes de predizer e de caracterizar falhas de tratamentos e fornecer prognósticos de gravidade em doenças no contexto de vulnerabilidade social.

“Apesar de estudos mostrarem que há uma evidente relação entre hormônios e respostas imunológicas envolvendo biomarcadores, o significado clínico em pacientes infectados por SARS-CoV-2 permanece amplamente desconhecido”, explicou a professora Ana Paula Morais Fernandes, da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. “Assim, pesquisas como esta, que analisam biomarcadores inflamatórios, têm o potencial de permitir uma melhor compreensão da doença, para busca de alvos terapêuticos no contexto da covid-19”, argumentou.

Para a infectologista Rosa Alencar Souza, da diretoria técnica do Centro de Referência e Treinamento em IST/Aids de São Paulo, “esta pesquisa é extremamente importante, primeiro considerando que temos informações quase inexistentes sobre o tema envolvendo as pessoas trans e todas as estratégias voltadas para esta população promovem sua inclusão nos serviços e uma aproximação às estratégias de prevenção às IST e ao HIV/Aids”, afirmou.

Etapas

No lançamento da pesquisa, Sorje explicou as etapas do estudo:“A gente dividiu a pesquisa em três partes. A primeira diz respeito ao atendimento e prevalência da epidemiologia de covid com outras infecções sexualmente transmissíveis, isso já vai trazer uma resposta para a população sobre a prevalência da covid e da existência de doenças infecciosas. Também vai trazer novas políticas públicas de saúde voltadas para os resultados dessa predominância. A outra parte da pesquisa é molecular, para a gente entender como as doenças se comportam juntas, isso vai trazer novos laudos terapêuticos, farmacológicos para no futuro termos novos remédios para doenças em conjunto. Já a terceira parte do estudo é a distribuição de autotestes, isto é importante pois você se desvincula de hospitais e laboratórios sofisticados, você consegue levar o insumo para a rua e aproximar a população, principalmente as populações que ficam longe de centros urbanos e que não têm acesso direto a serviços dos sistemas de saúde’’, disse o professor.

Abordagem plural

Para a ativista e diretora de projetos do Instituto Barong, Adriana Bertini, a implementação dessas políticas públicas especificas são essenciais e urgentes para dar voz à grupos vulnerabilizados.

“Eu vejo o Estudo Plural como uma forma de construir resistência para visibilizar a saúde dos corpos trans, que  são dissidentes e invizibilizados, Quando a gente fala de pesquisas, são mais invizibilizados ainda. Até quando falamos em departamentos de saúde, por exemplo, temos poucos ambulatórios trans. São Paulo ainda tem muitos recursos, mas periferias, o interior, outros estados e municípios não possuem toda a atenção especializada que São Paulo. A pesquisa é importante para chegar nestes locais’’, ressaltou. Adriana considera que o assunto precisa de um novo olhar, ser tratado como questão de saúde e não resumir à doença e estigmas.

“Atualmente estamos vivendo uma política de violência, contra os corpos trans e pessoas negras… eu não consigo ver que diminuiu o estigma e a discriminação no momento em que leio um boletim epidemiológico e vejo o índice de mortalidade contra pessoas LGBTQIAP+, Isso prova que os estigmas ainda não diminuíram, eu acho que não vai diminuir enquanto a gente não tiver uma discussão plural, como diz o nome do estudo, que conecte o HIV e todas as ISTs com a educação, com as questões ambientais, a economia e os direitos humanos, o HIV é uma questão social.’’

Multiplicidade de pandemias

A professora Ana Paula, que também é coordenadora do USP Diversidade, acrescentou que as pessoas têm respostas diferentes a pandemias. “Os determinantes genéticos são muito individuais e o estudo quer trabalhar com grupos discriminados para investigar se esses condicionantes sociais têm interferência direta na covid’.”

Steven Butterman também acredita que estamos vivendo uma multiplicidade de pandemias, de raça, de gênero. “Existe uma homofobia internalizada, os estigmas diminuíram, mas não o suficiente. Existe uma tendência do ser humano em inferiorizar. Projetos  como este mostram que infelizmente os preconceitos ainda existem, mas a gente consegue encarar com a força de várias áreas simultaneamente. E eu não consigo resistir a essa luta conjunta’’.

Material biológico

Durante o Estudo Plural, o material biológico será coletado pela equipe do Barong e por cerca de 20 graduandos e pós-graduandos da Escola de Enfermagem da USP de Ribeirão Preto. Essas amostras serão recebidas, preparadas e armazenadas pela equipe do NDSS do Instituto Adolfo Lutz.

“A atuação do núcleo neste trabalho tem a finalidade de preservá-las adequadamente até o momento das análises laboratoriais previstas”, explica o professor Luís Fernando de Macedo Brígido, diretor do Núcleo de Doenças Sanguíneas e Sexuais do IAL. “O compromisso do NDSS com o projeto é garantir a qualidade dessas amostras.”

Segundo os responsáveis pela pesquisa, todos os testes e autotestes são da GermSure, que está garantindo o diagnóstico de covid-19 no Estudo Plural. A startup dedica-se a desenvolver soluções em saúde para promover ferramentas sustentáveis para a prevenção e o controle de doenças.

Recrutamento

As ações para o recrutamento da pesquisa, que serão realizadas em casas de abrigo e acolhimento de pessoas trans – e também no Ambulatório de Saúde Integral de Travestis e Transexuais do CRT estão na “amostra intencional” no estudo, com a qual as pessoas convidadas serão incluídas tão logo assinem o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido – TCLE(*) do estudo. “Quando a gente traz a narrativa desses corpos trans invisibilizados, pensa na negação do acesso a um direito. Direito básico à saúde, neste caso”, explica Alberto Silva, coordenador da Casa Florescer.

Grande parte da população acolhida pela Casa Florescer vem da invisibilidade. Para Silva, a aproximação com uma equipe multidisciplinar na interlocução “reverbera outra possibilidade de autodescoberta, de reinvenção e de desenhar outras perspectivas perante o direito básico à saúde”. Muitas trans ainda têm bastante resistência, fruto de uma relação com a saúde que muitas vezes se torna tóxica, devido à falta de entendimento na aproximação com esse território, tão necessária para essas corpas e esses corpos”.

Com população estimada em 20 milhões de habitantes, a capital paulista absorve considerável número de pessoas transexuais trabalhadoras do sexo e do entretenimento adulto. Os locais de coleta dos dados serão os de maior circulação desta população, como o Largo do Arouche, Rua Moisés Kauffmann, Avenida Indianópolis, Alameda Casa Branca, Rua Frei Caneca, entre outros. Novas datas serão agendadas em outras casas de acolhida, como a Casa 1, Casa da Luz, Casa Chama, Casa Neon Cunha e os Centros de Cidadania Norte e Leste.

Espera-se que as coletas sejam analisadas até “o final de agosto, começo de setembro, para que os resultados sejam apresentados até o final de dezembro”, conclui a professora Ana Paula.

Kéren Morais

 

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