A luta contra o HIV é um desafio diário. Um desafio que constantemente sai da agenda. Toda vez que um evento importante emerge, HIV sai um pouco da agenda mundial. Aquecimento global, hepatite C, COVID-19… Claro que não devemos negligenciar as ameaças que constantemente emergem, mas não devemos esquecer desse desafio com o qual convivemos a quase meio século, que é a infecção pelo HIV e a aids.

No geral as notícias são boas. Quando detectamos a aids no mundo no início dos anos 80, éramos meros expectadores da catástrofe. A expectativa de vida que era tão limitada no início começou a aumentar conforme a ciência avançava e hoje, com satisfação observamos que a expectativa de vida das pessoas vivendo com HIV é igual ou superior a expectativa de vida de quem não é portador do vírus. Isso graças ao tratamento com antirretrovirais, que cada vez é mais eficaz e mais amistoso. Mesmo assim, após 40 anos da descrição da aids, não conseguimos uma vacina preventiva e nem curar as pessoas em uma escala grande.

Conseguimos nesse momento detectar os desafios mais modernos para as pessoas vivendo com HIV. Um deles é a inflamação constante que acontece no corpo da pessoa, inflamação essa que é mitigada com o tratamento com os medicamentos do coquetel, mas não é completamente abolida. Essa inflamação conhecida como micro inflamação, leva a desgaste acelerado dos órgãos e tecidos de nosso corpo, propiciando um envelhecimento acelerado. A micro inflamação, apanágio de doenças crônicas como diabetes, hipertensão artérial, insuficiência renal crônica, doenças reumatológicas e HIV é denominada na língua inglesa como inflamageing, ou inflamação que propicia o envelhecimento. O outro desafio moderno formidável é a cura da infecção pelo HIV. Tratamos as pessoas vivendo com HIV com os medicamentos do coquetel, e quando interrompemos o tratamento, quase que invariavelmente o vírus volta com toda a sua força. Interessantemente, a causa da inflamação e o fator limitador para a cura da infecção pelo HIV são exatamente a mesma coisa: a persistência do HIV no nosso corpo em um contingente de células infectadas que apresentam o vírus dormente ou também células que alberguem vírus defeituosos. Os vírus defeituosos são vírus que tem o DNA do HIV de tamanho reduzido e seriam incapazes de sair da célula porque faltariam pedaços desse vírus. Mesmo assim, esses vírus pervertem a maquinaria celular e produzem proteínas do HIV que inflamam nosso corpo. Os vírus defeituosos seriam vírus zumbis!

Quando percebemos que nenhuma célula definitiva de nosso corpo é infectada pelo HIV, vislumbramos a perspectiva real da cura. De fato, alguns poucos pacientes foram curados com transplante de medula óssea, recebendo uma medula resistente ao HIV. Dessa forma, esses pacientes que precisaram de transplante de medula porque além do HIV tiveram cânceres hematológicos como leucemia ou linfoma receberam medula de doadores que não se infectam pelo HIV porque não tem nas suas células a porta de entrada para o vírus. De fato, 1% das pessoas tem esse defeitinho genético que as torna resistentes a infecção pelo HIV (não se infectariam) e a medula delas foram usadas para o transplante. O paciente de Berlim foi o primeiro curado, seguido do paciente de Londres e aguardamos os resultados de um terceiro paciente, o paciente de Dusseldorf. Isso foi considerado cura esterilizante do HIV, onde o vírus foi completamente eliminado do corpo humano. Não podemos fazer transplante de medula óssea com objetivo exclusivo de curar as pessoas do HIV posto que é procedimento de risco que pode levar a morte. Mas o conceito está provado! É possível a cura do HIV. Precisamos agora pensar em novas estratégias que possam ser aplicadas para um grande número de pessoas.

Já detectamos as barreiras que existem para a cura da infecção pelo HIV. Uma delas é a potência do coquetel de medicamentos anti-HIV. Usamos normalmente uma associação de três medicamentos e isso é suficiente para que a carga viral fique indetectável quando usamos os testes de carga viral disponíveis para o monitoramento do tratamento das pessoas. Esses testes detectam mais do que 50 cópias do RNA do HIV por mL de plasma sanguíneo.

Quando usamos os testes de carga viral ultra sensíveis, que tem a capacidade de detectar uma única cópia de RNA do HIV por mL de plasma, percebemos que 80 % das pessoas em tratamento com o coquetel ainda tem vírus detectável na corrente sanguínea, significando que o coquetel não tem a potência suficiente para matar todos os vírus que se multiplicam no corpo da pessoa. Outro desafio formidável que limita as possibilidades de cura das pessoas é a latência viral. Isso significa, que uma parte dos vírus que entram nas células humanas ficam dormentes (latentes) e não são atingidos pelos medicamentos do coquetel. De fato, os medicamentos só agem quando o HIV se multiplica. Quanto mais tempo a pessoa fica sem tratamento com medicamentos do coquetel, maior o contingente de células latentes, diminuindo assim cada vez mais a possibilidade de cura dessa pessoa. O tratamento paralisa o crescimento desse contingente de células latentes e esse contingente tende a diminuir com o tempo de tratamento. O continente de células latentes infectadas pelo HIV do corpo de uma pessoa seria como um balão que cresce com o tempo de infecção. Quando se trata a pessoa, esse balão começa a diminuir porque os vírus dormentes vão acordando e morrendo pela ação dos medicamentos do coquetel. Como mencionado anteriormente, quando interrompemos o tratamento, um desses vírus acorda e a multiplicação do HIV volta com toda força. Concluímos assim que para manter esse balão em tamanho reduzido, devemos detectar a infecção pelo HIV precocemente e tratar as pessoas o mais rapidamente possível.

Assim as pessoas teriam menos inflamação e estariam mais próximas da cura, quando ela chegar em larga escala. Modelos matemáticos também sugerem que se tratarmos as pessoas de forma contínua, esse balão diminuiria até se extinguir e as pessoas se curariam, mas esse processo demoraria muito. Poderia durar até 80 anos! Assim, uma das estratégias para a cura do HIV seria o de acelerar esse processo acordando o vírus. Podemos de fato acordar o vírus com medicamentos que revertem a latência do HIV na tentativa de transforma 80 anos em 2 anos talvez. Exploramos também medicamentos que tenham a capacidade de matar essas células que tenham o HIV latente, como se faz em oncologia por exemplo. Outra estratégia seria a de estimular a nossa imunidade para que pudéssemos detectar e eliminar essas células latentes. Explora-se também a possibilidade de usar a engenharia genética para retirar o HIV dessas células. Atualmente, algumas tecnologias de engenharia genética são capazes de retirar pedaços de DNA de nossas células. Explora-se, portanto a possibilidade de retirar o HIV dessas células com engenharia genética.

Existe outra estratégia para a cura da infecção pelo HIV que seria a de usar uma estratégia oposta à da interrupção da latência do HIV, ou seja, promover de fato uma latência irreversível. Isso faria com que o vírus ficasse dormente de forma permanente, ficando incapaz de sair da célula, sendo que as pessoas não precisariam mais de usar os medicamentos do coquetel. Essa latência viral profunda, já aconteceu em alguns poucos pacientes vivendo com HIV que foram considerados curados, naquilo que é considerada cura funcional da infecção pelo HIV. Na cura funcional, o HIV continua no corpo, mas não se manifestaria. De fato, 1 a 3% das pessoas vivendo com HIV seriam Controladoras de Elite. As Controladoras de Elite apresentam carga viral naturalmente indetectável e a imunidade estaria mantida. Recentemente, duas Controladoras de Elite evoluíram com aparente desaparecimento dos vírus competentes das células de seus corpos, com perda de sinais de que o HIV estivesse lá. Foram consideradas controladoras “profundas”, sendo esse um exemplo de cura funcional onde até se duvida que o HIV possa ainda estar em seus corpos. Essas super controladoras eliminaram os vírus que teriam a capacidade de se multiplicar, sobrando somente HIV naqueles lugares da nossa cromatina (nosso DNA celular), de onde o HIV não consegue sair. O vírus ficaria numa verdadeira catacumba da nossa cromatina celular.

Ainda não sabemos direito o porquê das pessoas não se curarem ou o que que as faria Controladoras de Elite. Sabemos, entretanto, que se tratarmos as pessoas durante a infecção aguda pelo HIV, mesmo antes da soroconversão, aumentaríamos muito a chance do controle natural da infecção. Estes seriam os Controladores Pós Tratamento. Esse tratamento muito precoce levaria a chance superior a 20% de adquirirem o perfil dos Controladores de Elite (figura). Essa história nos leva a concluir que o inicio da infecção pelo HIV, notoriamente os primeiros 6 meses, fariam com que nosso sistema imune ficasse “fraturado” pela quantidade e complexidade do HIV que entra em nosso corpo, num mecanismo de tolerância ao vírus. Tolerância é um termo técnico. É o oposto da imunização. Se injetamos uma quantidade pequena de uma proteína em nosso corpo, nosso sistema imune a elimina e aprende a se defender dela. Esse é o mecanismo da vacinação. Se injetarmos em nosso corpo a mesma proteína em quantidade muito elevada, o sistema imune decide simplesmente esquecer esse componente antigênico, por não ser incapaz de lidar com ele. Esse é um dos mecanismos propostos para explicar nossa incapacidade de eliminar definitivamente o HIV após sermos infectados por esse vírus. No caso dos controladores pós tratamento, a diminuição do componente antigênico inicial se associa a formação de imunidade muito mais robusta.

O mundo inteiro pesquisa estratégias para curarmos definitivamente as pessoas que tem HIV. Já temos estratégias eficientes para eliminar a transmissão de mãe para filhos com o coquetel. A profilaxia pré exposição, impede a infecção das pessoas em risco de aquisição do HIV. Mais! O tratamento deixa a carga viral indetectável e as pessoas param de transmitir o vírus. Conseguirmos a cura para uma quantidade significativa de pessoas seria mais um componente para avanço da ciência e para conseguirmos um mundo futuro sem HIV. Observo que todas as pessoas vivendo com HIV desejariam ser um(a) Controlador(a) de Elite, mas todo Controlador de Elite desejaria se livrar do HIV. Dessa forma, mais do que uma contribuição a ciência, curar as pessoas é o correto a se fazer.

* Ricardo Sobhie Diaz é professor Associado e Livre Docente. Chefe do laboratório de Retrovirologia, disciplina de Infectologia, Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo.