Pode-se dizer que corpos negros positivados para HIV carregam em si múltiplos processos de morte? Considerando os mais de 40 anos de epidemia e o atual contexto social, político, econômico e cultural do Brasil, podemos acreditar que seremos uma geração que ficará livre da AIDS? Há pontos de convergência entre as problemáticas suscitadas pelos estigmas, oriundos do HIV e as ficções produzidas pelo racismo? Existe democracia racial no Brasil? Quem são os indivíduos que historicamente foram considerados humanos? E mais; quem definiu o que é humanidade e sobre quais parâmetros a mesma foi concebida?
Compreendo que a história da humanidade é também a história da guerra. Na Europa, por exemplo, durante o chamado século das luzes, os iluministas, teciam ideias sobre separação entre Estado e Igreja, progresso, fraternidade, liberdade, mas em contra partida, a Europa se constituía justamente a partir dos contínuos roubos da riqueza de outros povos, sequestros, assassinatos em massa e explorações, impossíveis de serem mensuradas. E é neste cenário e sob esses princípios que o Brasil é gerado, tendo sua gênese o colonialismo.
A socióloga e antropóloga Lélia Gonzales, faz uso da psicanálise para compreender de quais modos o racismo constituí a formação do indivíduo brasileiro e as imbricações entre raça, classe e gênero. Lélia busca na psicanálise apoio teórico para compreender o que é neurose (traço da condição moderna) e o que isso informa sobre as condições das relações sociais no país, por meio da seguinte reflexão: o Brasil sofre de uma neurose? Caso sim, de que forma isso está expresso em sua prática cultural?
Seguindo tal linha, Lélia dirá o seguinte: na modernidade o complexo de Édipo, diz que a criança (criança= neste caso, trata-se para Lélia do homem branco, pois interessa refletir sobre o patriarcado) em seu processo de formação irá desenvolver desejos pelo seu pai ou por sua mãe, entretanto, e para a psicanálise os cuidados maternos não necessariamente serão desempenhados pela figura da mãe biológica (mulher branca), qual foi a figura que compulsoriamente foi designada por responsável por assegurar os cuidados da criança? A mulher negra, através da posição da babá ou empregada doméstica. Por isso, segundo uma análise psíquica, o desejo do homem branco, então não seria por sua mãe biológica, mas sim pela mulher negra que o cuidou. Indo mais além, Lélia dirá que o racismo tornou tal desejo duplamente proibido, primeiro por conta do tabu do incesto e segundo porque o racismo no brasil interdita qualquer possibilidade de desejo de um homem branco em relação a uma mulher negra que não seja em alguma medida estruturado pela violência.
Então esse desejo que é negado, sublimado naquilo que é o racismo no Brasil, que não é explicito, mas está o tempo inteiro colocado na dinâmica das relações. Isso é o que Lélia chama de neurose cultural brasileira, a partir desta relação de poder entre o patriarcado e seu processo de criação personificado na figura da criança, homem branco, e a mulher negra, sua localização social e toda implicação que há nela. Nesta sentindo, segundo Lélia, a não discussão da neurose (considerando que a tensão racial no país é silenciada) daria espaço para o processo de transmutação para aquilo que se entende por racismo estrutural, ora expresso nas relações de poder institucional, ora expresso nas práticas das relações da entre as pessoas na vida diária. Pois a partir da neurose, o racismo produz identidades negras “subalternas” e identidades brancas narcísicas.
Fanon, em Peles Negras Máscaras Brancas, dirá o seguinte:
“A explosão não vai acontecer hoje. Ainda é muito cedo… ou tarde demais. Não venho armado de verdades decisivas. Minha consciência não é dotada de fulgurâncias essenciais. Entretanto, com toda a serenidade, penso que é bom que certas coisas sejam ditas. Essas coisas, vou dizê-las, não gritá-las. Pois há muito tempo que o grito não faz mais parte de minha vida. Faz tanto tempo…Por que escrever esta obra? Ninguém a solicitou. E muito menos aqueles a quem ela se destina. E então? Então, calmamente, respondo que há imbecis demais neste mundo. E já que o digo, vou tentar prová-lo. Em direção a um novo humanismo… À compreensão dos homens… Nossos irmãos de cor… Creio em ti, homem… O preconceito de raça… Compreender e amar…
De todos os lados, sou assediado por dezenas e centenas de páginas que tentam impor-se a mim. Entretanto, uma só linha seria suficiente. Uma única resposta a dar e o problema do negro seria destituído de sua importância.
Que quer o homem?
Que quer o homem negro?
Mesmo expondo-me ao ressentimento de meus irmãos de cor, direi que o negro não é um homem.
Há uma zona de não ser, uma região extraordinariamente estéril e árida, uma rampa essencialmente despojada, onde um autêntico ressurgimento pode acontecer. A maioria dos negros não desfruta do benefício de realizar esta descida aos verdadeiros Infernos.
O homem não é apenas possibilidade de recomeço, de negação. Se é verdade que a consciência é atividade transcendental, devemos saber também que essa transcendência é assolada pelo problema do amor e da compreensão. O homem é um SIM vibrando com as harmonias cósmicas. Desenraizado, disperso, confuso, condenado a ver se dissolverem, uma após as outras, as verdades que elaborou, é obrigado a deixar de projetar no mundo uma antinomia que lhe é inerente.
O negro é um homem negro; isto quer dizer que, devido a uma série de aberrações afetivas, ele se estabeleceu no seio de um universo de onde será preciso retirá-lo.
O problema é muito importante. Pretendemos, nada mais nada menos, liberar o homem de cor de si próprio. Avançaremos lentamente, pois existem dois campos: o branco e o negro”.
Para Fanon, o homem negro (leia-se pessoas negras), deseja ser um ser humano (na verdade trata-se de ser reconhecido como tal), pois sendo assim, torna-se aceito, civilizado, que também é sinônimo de ser branco. Logo, é branco que ele (a) tentará ser. Pois o sujeito na condição de alienado faz isso através das máscaras brancas, pois enxerga nelas a única possibilidade de saída de sua negritude excluída, marginalizada, ou seja, a busca por esses disfarces que são disparadores para alienação, que é uma vida definida pelo aprisionamento, pelo servilismo, prostração, desespero, pelo medo, pelo tremor e pela escravidão.
O sociólogo Abdias do Nascimento, em O Genocídio do Negro Brasileiro, faz críticas a falácia em torno do mito da democracia racial. Abdias, enumera aquilo que segundo ele seria alguns dos processos de morte material e subjetiva à que estão submetidos negros e negras nesse país, genocídios expressos por meio de: produção de condições de vida análogas à escravidão, encarceramento em massa, apagamentos epistêmicos, estéticos, linguísticos e as impossibilidades do vivenciar experiências religiosas e culturais que não estão centralizadas na colonização.
Dito isso, são geradas as seguintes questões: quais são entrecruzamentos entre as problemáticas produzidas pelo HIV especialmente aquelas relativas a estigma e o racismo? E mais; é possível o corpo que nunca desfrutou plenamente da vida, morrer? Há tecnologias biomédicas suficientemente eficazes para curar os sofrimentos das existências que tiveram que se constituir a partir do exílio e dos traumas?
Segundo o antropólogo Richard Parker, há três dimensões em torno do estigma que são fundamental relevância para compreende-lo, havendo destaque para: a historicidade do estigma, ou seja, ele é histórico, é empregado estrategicamente, e produz e reproduz relações de desigualdades. Para Richard, quanto ao HIV, assim como para Lélia, quanto ao racismo; é impossível pensar estigmas (entendo estigma por marcas corporais e ou sociais) sem considerar que o estigma é produzido por atores reais e identificáveis que buscam legitimar o seu próprio status de dominação dentro das estruturas de desigualdade sociais existentes, sempre amparados por múltiplas práticas culturais.
O negro (segundo as ficções do racismo) enquanto feio, sujo, delinquente, desprovido de inteligência, emocionado, incapaz de falar por si, reduzido a animalidade, vítima de sua aparição, como disse Fanon. Já o corpo positivado para HIV (segundo os signos do Estigma) classificado como o sujo, o perigoso, o vetor, o desviante, o culpado, o castigado, condicionado a vigilância permanente e destinado a uma morte pública.
Todavia, Richard, me parece apontar para caminhos de insurgência ao reiterar em O Fim da AIDS? que todo o conceito de sexo mais seguro e redução de danos foi concebido originalmente por comunidades e grupos, historicamente afetados pela AIDS, ou seja, ele propõe o fortalecimento de uma subversão da lógica de compreensão do corpo e suas experiências, apenas como um campo de espaço vazio, frágil, passivo e incapaz de produzir saberes que não modiquem realidades duras, caóticas e problemáticas.
Em Rumo à redistribuição desobediente de gênero e anticolonial de violência, Jota Mombaça, levanta a seguinte consideração: “Quem policia a polícia? C. morreu asfixiada no porta-malas de uma viatura da polícia militar de São Paulo. A narrativa oficial é a de que ela teria entrado lá por vontade própria, na intenção de roubar algo e acabara morta. Segundo um portal de notícias online, a viatura foi reparada, limpa e voltou às ruas em poucos dias. Ninguém foi responsabilizado exceto C., que morreu asfixiada e tinha o rosto roxo e as mãos sujas de sangue quando a encontraram, na traseira de uma viatura militar, com 19 anos de idade. Um boletim de ocorrência foi feito contra ela. A polícia no Brasil é a única facção criminosa responsável pela investigação de seus próprios crimes”.
Nota-se que ao fazer tal consideração, Jota denuncia o carácter seletivo das ações da polícia em torno dos corpos negros, racializados, empobrecidos, não- heterossexuais, não- cisgêneros e consequentemente construídos enquanto impuros, patológicos, delinquentes, feios e selvagens e que por isso precisam sob a égide dos discursos oficiais serem aprisionados e ou mortos. Em linhas gerais, Jota, questiona todas as estruturas sociais vigentes que ao determinar humanidade excluem milhares de pessoas que não estão enquadradas na categoria: branco, homem, heterossexual, cisgênero, jovem, rico, cristão e viril. E mais; ela faz o seguinte aviso: “Às pessoas heterossexuais, cuja heterossexualidade é contínua ao regime político de homogeneização sexual, extermínio dos desejos subnormais e genocídio das coorporidades desviantes, eu gostaria de dizer: nós vamos penetrar suas famílias, bagunçar suas genealogias e dar cabo de suas ficções de linhagem. Para cada pessoa cisgênera que olha a si e se vê como norma, então olha o mundo e o vê como espelho, deixo o seguinte recado: nós vamos desnaturalizar a sua natureza, quebrar todas as suas réguas e hackear sua informática da dominação. E, finalmente, dirijo-me a todos os ricos, a todas as gentes cuja posição de classe garante acessos privilegiados a confortos, comidas, conhecimentos, possibilidades e estruturas de reprodução da injustiça e desigualdade econômica como paradigma de organização social: vamos invadir suas casas, incendiar seus automóveis, apedrejar seus shopping centers e agências bancárias, praguejar contra sua polícia, amaldiçoar sua segurança, esvaziar sua geladeira e escarnecer de suas ilusões de conforto ontológico”.
Neste sentindo, compreendo que são infinitos os desafios que os povos colonizados possuem a frente. Pois será preciso resgatar e construir memórias que não estejam restritas a dor e sofrimento, disputar narrativas (nomear normas), construir estéticas corporais e simbólicas que façam exaltação de todos os signos que historicamente foram discriminados, elaborar formas não institucionais de cooperação em torno da distribuição da saúde, das riquezas, do dinheiro, desmontar prisões e hospitais psiquiátricos e demais espaços de aprisionamento, fazer articulações anti- imperialistas, destruir o capitalismo, e não menos importante, elaborar modos individuais e coletivos que estejam para além das marcações produzidas pela violência.
Pois não haverá resposta definitiva a AIDS enquanto a tônica do mundo for a guerra!
Os inventados, terão de se reinventar.
* Jean Vinicius, graduando em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense, ativista em HIV/AIDS e militante do Movimento Negro Unificado.
Contato: @viniciusjeann