Foi no início dos anos noventa que dois meninos, ao vinte e pouco anos de idade, decidiram escrever sobre um tema ambicioso e até então não explorado: Mulheres e HIV.

Se até hoje a temática das mulheres vivendo com HIV é frequentemente relegada a segundo ou terceiro plano na escala de prioridades, imagine-se lá em pleno 1995.

Dois foquinhas (jornalistas novatos), acharam de falar sobre isso, iniciando provavelmente uma das primeiras parcerias acadêmicas para tratar do tema no Brasil. Era um Trabalho de Conclusão de Curso com um tema inédito, mas os “meninos” eram muito novos e acumulavam trabalho, estudo, estágio, por isso, guardadas todas as boas intenções, e embora ambos fossem reconhecidamente talentosos, foi preciso admitir que o trabalho ficou péssimo. Levou nota mínima e bronca dos orientadores. Mesmo assim, verdade seja dita: os rapazes foram muito corajosos.

Passaram-se décadas e surgiu a necessidade de buscar essa história jocosa do início da carreira do jornalista, historiador, professor e psicólogo, Marcus Vinícius Oliveira Batista, para o gancho necessário da homenagem que agora prestamos a esse livre pensador, amoroso, libertário e afetuosamente revolucionário.

Marcus, seguiu estudando a temática do HIV por um bom tempo nos anos 90. Escreveu artigos e matérias, e era um grande admirador do trabalho da Agência de Notícias da Aids, e sua fundadora Roseli Tardelli. Guardava na memória, detalhes de conversas que teve com ela sobre esse tema ainda tão envolto em estigma e discriminação.

Marcus nunca foi ativista ou militante de alguma causa, mas sua vida foi um dos maiores instrumentos de enfrentamento às injustiças sociais, aos quais tive o privilégio de conhecer.

Marcus possuía uma formação vasta e interdisciplinar, atuando como comunicador social, escritor e professor universitário. Sua trajetória profissional sempre foi marcada pela relação entre o mercado de trabalho e a vida acadêmica. Sempre acreditou na necessidade de formação contínua para a evolução profissional, o que o levou a incorporar novas profissões, sem eliminar as anteriores, além de permitir maior versatilidade no olhar de professor, jornalista e psicólogo. Aliás, a Psicologia entrou em sua vida como um novo e necessário desafio. Depois de escrever histórias e estudar História, veio um desejo a mais na sua trajetória, o de ajudar as pessoas a escreverem suas próprias histórias. A Psicologia foi uma paixão que surgiu com a maturidade e que veio como resposta a diversos processos individuais. Dentre os diversos temas com os quais trabalhava, um primordial era o luto.

É preciso ética e dedicação para mergulhar neste oceano, e Marcus fazia isso com maestria. Imergindo em seu luto e enfrentando suas cicatrizes, ajudava os pacientes a elaborar e ressignificar suas perdas.

Em seu escopo de trabalho sempre estiveram presentes o acolhimento incondicional à população LGBTQI+, gênero e sexualidade e humanidades.

O que quase ninguém sabe, é que já havia algum tempo que voluntariamente Marcus dedicava parte da sua agenda para atender gratuitamente ou a preços simbólicos, jovens vivendo com HIV da Rede Mundial de Pessoas Vivendo e Convivendo com HIV/Aids e Mães pela Diversidade. Além disso, Marcus estava preparando uma série de vivências sobre luto e Covid, em parceria com a Agência de Notícias da Aids, que deveria ser lançada ainda em julho. Não deu tempo.

Essa semana Marcus nos deixou, vítima de complicações do Covid agravadas pelo diabetes. Ao noticiar sua morte para alguns de seus pacientes da Rede Mundial, recebi áudios com choro e textos emocionados: – Como vou continuar sem a ajuda dele, perguntavam alguns.
O Covid não apenas mata suas vítimas, mas flagela sua legião de órfãos, sejam eles amores, amigos, familiares, alunos… Mortes evitáveis!

Meu desejo hoje, é que seu legado e luz, sejam fortes o suficiente para inspirar outros focas como ele a abraçarem suas profissões com a mesma responsabilidade social, compromisso e amor com que nosso irmão fez durante sua trajetória. Segue em paz, amado nosso.

* Fabi Mesquita é jornalista e educadora, e colaboradora da plataforma Brasileiras pelo Mundo, que congrega uma centena de mulheres brasileiras expatriados ao redor do mundo. Poetisa e bailarina, é mestre em Educação, Arte e História da Cultura e doutoranda em Antropologia. É ainda especialista em Educomunicação e Mobilização Social, com ênfase em Comunicação Não Violenta, Gênero, Direitos Humanos em Saúde e Juventudes.

** Marcus Vinicius Oliveira Batista era jornalista, professor, escritor, historiador e psicólogo. Ele morreu aos 46 anos em Santos, no litoral paulista, em 14 de julho de 2021, em decorrência de complicações causadas pela Covid-19. Marcão, como era conhecido, havia publicado, dias antes de morrer, uma crônica chamada ‘O especialista’, que fazia uma crítica a quem tentava escolher a fabricante da vacina contra a doença.

Contato: fabiana.mesquita@yahoo.com.br