Num comunicado público, emitido nesta quinta-feira em Genebra, a relatora da ONU sobre hanseníase, Alice Cruz, pediu que o Supremo Tribunal de Justiça reconheça o direito à reparação dos indivíduos que, enquanto crianças, foram separados dos seus pais afetados pela hanseníase e segregados da sociedade no Brasil.

Cerca de 16.000 crianças foram separadas dos seus pais afetados pela hanseníase e enviadas para instituições entre 1923 e 1986, em conformidade com a política de segregação forçada então praticada pelo Estado. Durante a última década, foram apresentados vários casos de crianças separadas nos tribunais estaduais, mas estes ainda estão pendentes.

“O Supremo Tribunal tem agora uma oportunidade de corrigir esta injustiça que, dados os seus efeitos duradouros, deve ser considerada uma violação permanente de natureza imprescritível”, disse Alice Cruz, que em 2017 se tornou a primeira Relatora Especial da ONU para a eliminação da discriminação contra as pessoas afectadas pela hanseníasee os seus familiares. “Estas pessoas suportaram uma vida inteira de sofrimento em resultado deste tratamento desumano e, para muitos que são agora idosos, o tempo está a esgotar-se para que vejam corrigidos os erros do passado”.

O caso deverá ser ouvido pelo Supremo Tribunal antes do final do ano.

“O Brasil tem o dever de oferecer reparações totais, incluindo um pedido de desculpas, memorialização e reabilitação, aos filhos separados de pessoas afetadas pela hanseníase, em conformidade com as normas internacionais relevantes em matéria de direitos humanos”, disse Cruz, acrescentando que tem instado repetidamente as autoridades a agir, sem demora.

A relatora ainda afirmou que muitas das crianças afirmaram ter sido abusadas em instalações estatais conhecidas como “preventórios”. Durante a sua visita ao Brasil em Maio de 2019, Cruz ouviu testemunhos de várias crianças separadas, que são agora adultos.

“Fui tirada da minha mãe quando era bebé e enviada para o preventório”, disse uma das vítimas a Cruz. “Quando eu tinha 7 anos, o sapateiro que trabalhava no preventório disse que eu era uma menina bonita, por isso ele seria o meu pai. Eu estava feliz porque sentia muito a falta dos meus pais. O sapateiro obrigou-me então a sentar no seu colo e começou a apalpar-me o corpo. Senti-me desconfortável, mas ele disse-me para ficar calada e fez-me sentir o cheiro da cola para sapatos, o que me fez sentir tonta. Ele violou-me. Brincaram com a minha vida”.

“O Brasil tem feito vários esforços louváveis na proteção dos direitos das pessoas afectadas pela hanseníase, mas é preciso fazer mais, especialmente no que diz respeito aos direitos dos seus filhos e filhas”, disse a Relatora Especial. “Espero que a decisão do Supremo Tribunal brasileiro reconheça finalmente os direitos das vítimas enquanto estas estiverem vivas e a proceder desta forma a um avanço importante na história sombria da hanseníase em todo o mundo. Justiça atrasada é justiça negada”.