Política exemplar no passado, o combate à aids dá passos para trás no Brasil. É vexatório o país perder a chance de se beneficiar totalmente da incorporação, pelo Sistema Único de Saúde (SUS), dos modernos métodos de prevenção do HIV e dos medicamentos fornecidos gratuitamente há mais de duas décadas.
Anunciada anualmente pelos governos, a lenta redução de mortes e de novos casos de aids é uma comemoração fake. O país fracassou na meta 90-90-90, que assumira atingir até 2020.
No plano traçado pelas Nações Unidas para o sonhado início do fim da Aids, baseado em claras evidências de que indivíduos com HIV e com carga viral indetectável não transmitem o vírus sexualmente, esperava-se que pelo menos 90% daqueles HIV positivos saberiam dessa condição; diagnosticados, 90% acessariam os antirretrovirais e, desses, no mínimo 90%, em tratamento adequado, não teriam mais o vírus circulando pelo sangue.
Neste domingo (1º), Dia Mundial de Combate à Aids, a situação real é bem outra. E assusta. Estima-se que mais de 360 mil pessoas, entre as 900 mil que vivem com HIV, estão fora do tratamento eficaz. Com maior risco de adoecimento e morte, também podem estar propagando involuntariamente a epidemia. Isso porque não sabem que estão infectadas ou, devido a falhas nos serviços de saúde, a desigualdades e à exclusão social, não conseguem boa adesão ou abandonam o tratamento.
A epidemia tenderá a crescer se, além do uso limitado do arsenal médico e científico, persistirem os ataques a quatro pilares que sustentavam a resposta brasileira à Aids: os bons serviços públicos, a inclusão de minorias, a prevenção sem censura e a atuação das organizações não governamentais.
Já sucateados e com falta de médicos, serviços do SUS que assistem pacientes com HIV sofrerão com os efeitos do teto de gastos federais e com a possível flexibilização do orçamento mínimo com saúde obrigatório a estados e municípios.
Planos de saúde, por sua vez, pressionam pela liberação de contratos segmentados, que deixariam de fora atendimentos complexos e doenças crônicas como a aids.
O ambiente extremista de incentivo à discriminação e a violências contra mulheres, negros, gays, travestis, transexuais, profissionais do sexo e usuários de drogas distancia justamente quem é mais vulnerável ao HIV da prevenção, da testagem e do tratamento.
Próximas das populações esquecidas, com trabalhos em comunidades, periferias, favelas, escolas e cadeias, estão sob ataque muitas entidades antes mobilizadas para que direitos fossem reconhecidos e políticas preservadas.
Censurada, a prevenção que inclui as pessoas com HIV e que se dirige aos mais vulneráveis deu lugar a campanhas sem foco ou estigmatizantes, como são as peças mais recentes do Ministério da Saúde.
Sem uma nova mobilização da sociedade civil e sem homens de Estado que retomem os direitos humanos e as bases científicas e éticas da saúde pública, a luta contra a aids estará perdida no Brasil.
* Mário Scheffer é professor do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP e Caio Rosenthal é médico infectologista.
Fonte: Folha de S. Paulo