Para abrir o evento Mais Arte, Menos Aids, o jornalista Lucas Bonano mediou, nesse sábado (29), um bate papo entre o diretor do Programa Conjunto das Nações Unidas (Unaids), Cleiton Euzébio, o diretor da Aids Healthcare Foundation (AHF), Beto de Jesus e professor do Departamento de Culturas Ibérica e Latino-americanas da Universidade de Columbia, João Nemi, para discutir estratégias de prevenções com objetivo de entender como diminuir o número de novas infecções por HIV. 

Sobre as diferentes perspectivas do preconceito, João Nemi disse que se recorda de quando, na escola, as crianças começavam a ofender outras crianças as chamando de “bicha” e que depois da epidemia de aids, passaram utilizar o termo aidético para se referir aos que eram homossexuais. “Perdi muita gente, professores morriam e a gente não sabia o que tinha acontecido. A ideia do estigma está sempre presente nessas histórias”, disse lembrar o quanto o preconceito o marcou na infância.

Beto de Jesus lembrou que começou o trabalho no universo da epidemia de aids no ano de 2003. “Quando pego a foto dos meus amigos na época, todos já faleceram. No período de 86 a 90, fiquei sem me relacionar com ninguém então provavelmente eu teria me infectado também.” Trinta anos depois, Beto diz que uma das marcas que ficou foi uma campanha para arrecadar água sanitária para limpar os objetos e a casa das pessoas que viviam com HIV/aids. 

Populações mais vulneráveis

O diretor interino do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/aids (Unaids), Cleiton Euzébio, também falou sobre como o estigma marcou sua adolescência. “Pensando como um jovem gay do interior, sou de uma geração de gays, que apesar de não sermos ensinados sobre HIV/aids, a gente tinha uma certeza: era uma questão de tempo até a gente se infectar. Se a educação sexual já era limitada para os heterossexuais, imagine para os homossexuais.”

Nesse sentido, Beto enfatizou que as pessoas se infectam porque são humanas. “A primeira coisa que precisamos tirar da frente é o mito de que a solução é apenas informação, a informação em si não resolve tudo. Tem a questão das vulnerabilidades sociais, tem a autoestima, tem os apaixonamentos. A gente precisa reconhecer essa nossa humanidade.”

Segundo o diretor da AHF, é importante resgatar as redes de apoios mais próximas às pessoas. “Se por um lado a aids se tornou uma doença crônica, ao mesmo tempo precisamos ter cuidados para não criar uma displicência. Só informação não muda comportamento.”

“Talvez se os heteressexuais fossem uma população mais afetada, talvez a aids estaria mais na mídia. Mesmo nos contextos de países com epidemia generalizada, é importante destacar como as populações vulnerabilizadas são ainda mais impactadas”, complementa Cleiton.

O diretor do Unaids também defendeu que “é preciso ir além da perspectiva de pensar que as populações chaves são únicas em si. O recorte racial, por exemplo, é muito forte e importante. Não há como não pensar na diversidade que há dentro desses grupos. É olhar para os mais vulneráveis dentro dos vulneráveis para que que ninguém fique para trás na prevenção.”

 

HIV e arte

A roda de conversa também debateu representatividade em produções artísticas. “O HIV é uma doença que teve um salto muito grande de visibilidade, graças ao ativismo e a luta de muitos artistas que viviam como vírus também.”, disse Beto ao indicar o filme 120 Batimentos por Minuto.

Já Cleiton falou da importância do filme Carta para Além dos Muros, recentemente lançado pelo diretor de cinema, André Canto. “A gente precisa olhar para trás para reconhecer e homenagear as pessoas que se infectaram lá atrás e que, mesmo sem saber os resultados, lutaram para atingir o que conseguimos hoje. Precisamos reconhecer mais o papel histórico dessa luta.

“Se a gente quer acabar com a epidemia de aids, não há outro caminho senão dar autonomia para essas pessoas. Não chegamos nesse contexto do nada. Foi muita luta da sociedade civil”, disse Cleiton. 

Desafios e Perspectivas

Beto de Jesus afirmou estar apreensivo com algumas questões em relação ao futuro da epidemia. “A gente não pode descuidar. Ainda estou com o pé atrás em relação ao que pode acontecer com este governo porque não há como desvincular a luta de aids com política e com questões econômicas.” 

“A gente tem que mudar a forma com que estamos trabalhando. Muitas unidades que seriam estratégicas continuam sem horário extendido em algumas. A precariedade das relações trabalhistas também vai impactar na qualidade de vida da pessoa. Há pessoas que têm medo de ficar desempregadas, então não saem do trabalho para ir pegar remédio, pegar exames. As pessoas estão pauperizadas. Ou seja as relações de trabalho vão impactar no tratamento das pessoas que vivem com HIV/aids”, defendeu Beto de Jesus. 

Segundo João, os Estados Unidos já vive uma precarização do trabalho há décadas. “Entre as mulheres, 75% das recém infectadas são negras. Então a questão do acesso, da disponibilização, da testagem 24h em lugares estratégicos é fundamental. Essa disponibilidade é um trabalho de pouco a pouco, mas é esse trabalho que funciona.” 

“Acesso é também saber utilizar a linguagem. Em Nova York, por exemplo, onde há a população é de 40% de imigrantes, se faz propaganda sobre aids, PrEP, PEP em outros idiomas. Essa visualização é fundamental para a questão reconhecimento dessas pessoas como cidadãos”, disse João.

Para Cleiton, a resposta à aids é um patrimônio nacional, “é uma política de Estado e não de partido. A gente precisa sair da perspectiva de que vai ter uma campanha nacional que vai conseguir atingir as pessoas. As campanhas precisam ser cada vez mais direcionadas, devido à diversidade que temos.”

“Penso em campanhas não publicitárias, mas sim políticas para mostrar que a questão da sexualidade é fundamental e a gente não vai ver uma redução desses números se não falarmos sobre o tema em locais como a escola”, disse. 

No campo artístico, João defende que “a arte não está imune à branquitude e as exposições deixam isso muito claro. Mesmo em Stonewall, apesar de latinos, negros e transexuais, conta-se apenas a história dos brancos. Precisamos observar quem são as pessoas que estão fazendo arte. Precisou de 40 anos para as pessoas começarem a achar espólios de artistas negros ou que vivem com HIV/aids.”

Mulheres e HIV

Dados globais mostram que mulheres e meninas são as mais afetadas pela epidemia. Segundo Cleiton, o Unaids agora pauta, através de sua nova diretora executiva, essa questão como foco. “O crescimento entre homens é vertiginoso, mas quando a gente olha os dados, a gente escolhe o que priorizar, o que não pode significar que vamos esquecer essas populações e buscar fortalecer o movimento de mulheres, como é o caso do Movimento Nacional das Cidadãs Posithivas.”

“Não é justo que populações não sejam beneficiadas com as tecnologias que a gente tem acesso. Para dobrar o número de acessos à PrEP, por exemplo, é preciso incluir essas outras populações.”

Beto também afirmou que a AHF pretende, no próximo ano investir em trabalhos de empoderamento. “A gente tem que começar a empoderar. Pra você descobrir que uma mulher tem HIV, o ginecologista pede todos os exames e só pede HIV se for no pré-natal.”

A iniciativa é da Agência de Notícias da Aids e conta com  o apoio da Associação Paulista Viva, da Secretaria Municipal do Verde e do Meio Ambiente, do Programa Municipal de DST/Aids de São Paulo, da DKT do Brasil, da ONG AHF Brasil, da farmacêutica GSK, da Bayer e da Gilead Sciences.