Entusiasmado pela vida, santista, pai da Danielli, de 42 anos, e marido da Sandra, Jeová Pessin Fragoso, hoje com 62 anos, já coleciona mais de duas décadas na luta contra a hepatite C. E não é por acaso. Era 1994, quando recebeu o diagnóstico positivo para o vírus C. A notícia veio depois de uma doação de sangue. Na época, sem muitas informações, procurou um especialista e a única recomendação que recebeu foi para que continuasse levando a vida normalmente. “Sai do consultório bem tranquilo, o médico disse que eu tinha anticorpos da hepatite C e que o meu próprio organismo teria rebatido o vírus. Fiquei feliz da vida e acreditei que estava curado.”

Cinco anos depois, a doença silenciosa, que ataca as células do fígado, um órgão fundamental à vida, começou a dar sinais de que a saúde de Jeová já estava comprometida. “Trabalhava na Petrobrás e em um dia comum comecei a sentir dores abdominais, tinha me esquecido da hepatite C, pensei que estava com gastrite. Quando voltei ao médico e ele verificou o prontuário resgatou a história da hepatite.”

A partir daí Jeová descobriu que viver com hepatite C era mais sério do que imaginava. “O médico me pediu o exame PCR – um teste mais detalhado que confirma se há atividade do vírus no sangue. Em 1999, esse exame custava R$ 1680 e o meu convênio não cobria. Descobri que até no SUS era difícil ter acesso. Claro que paguei pelo exame, precisava saber qual era a minha condição clínica, mas ao mesmo tempo fiquei pensando nas pessoas que também precisavam fazer o teste e não podiam pagar por ele.”

Foi ai que sua luta social de Jeová contra as hepatites virais começou. “Com o resultado do exame em mãos fui encaminhado para o Hospital das Clinicas, em São Paulo, e pude fazer a biopsia hepática. O processo foi rápido porque eu tinha um seguro saúde, o resultado saiu em uma semana.”

Gravidade da doença

De acordo com os especialistas, quem é infectado pelo vírus C pode desenvolver a forma crônica da doença ou não, tendo apenas que conviver com ele. Além dos danos ao fígado, como cirrose, câncer e insuficiência hepática, a hepatite C também pode levar à diabetes, comprometer os rins e nervos e causar artrites em diferentes articulações.

O mundo de Jeová desabou depois que recebeu o resultado da biópsia: ele descobriu que estava no último grau de cirrose, já com indicação para um a transplante de fígado. Seu órgão estava totalmente comprometido, com células destruídas que deram lugar a um tecido fibroso de grau 4.

“Sai da consulta arrasado, acreditando que o meu fim estava próximo, foi um susto. Sempre acreditei que a cirrose estava ligada diretamente ao consumo de álcool. Eu não tinha costume de beber, às vezes tomava uma cervejinha, mas nada que poderia comprometer minha saúde.”

Com apoio da família e dos amigos, Jeová decidiu lutar pela vida. Ele entrou na fila de transplante, procurou um especialista e decidiu dar a volta por cima. “Entreguei o laudo médico na empresa e a medicina do trabalho decidiu pelo meu afastamento.”

Dois anos depois, aos 44 anos, ele foi aposentado por invalidez. “Eu não concordei com a decisão do Petrobrás, estava me sentindo ótimo, inclusive já estava tomando alguns medicamentos para controlar a ação do vírus. Não teve jeito.”

Ativismo

Sem ter o que fazer e com muita vontade de informar as pessoas sobre a gravidade da hepatite C, Jeová foi em busca de outras pessoas que também viviam com a doença.

Foi no consultório médico, durante uma consulta com o Dr. Evaldo Stanislau, que ele criou forças para lutar por políticas públicas para essa população. “Tinha muito gente morrendo, era quase impossível ter acesso ao exame de PCR. Eu e Dr. Evaldo decidimos fundar o Grupo Esperança para lutar por essa gente.”

Na primeira reunião, em novembro de 1999, compareceram 17 pacientes. O encontro seguinte reuniu 30. Teve reunião em que mais de 200 pacientes compareceram. “Era uma época que não tinha quase nenhum tratamento, as pessoas estavam sobrevivendo a custo do interferon, uma medicação que causava muito sofrimento ao paciente, com baixa taxa de cura.”

A ONG começou itinerante, de forma informal. Em março de 2000, o grupo passou a ser apoiado pelo SindPetro. Eles ganharam uma sala fixa, com tudo que tinha direito: telefone, internet, estacionamento. “Até hoje estamos neste espaço, somos muito gratos porque eles abraçaram a causa e sempre nos apoiam nas ações.”

Com o tempo, a ONG passou a reunir pessoas que estavam na fila há dois anos a espera de um PCR e também as que enfrentavam dificuldades para fazer um biópsia. “Denunciamos e brigamos para que todos tivessem acesso aos exames pelo SUS e também pelos convênios médicos. Conseguimos.”

A hepatite C é causada pelo vírus VHC, transmitido principalmente por sangue contaminado, durante compartilhamento de seringas, agulhas ou de instrumentos de manicure, pedicure, tatuagem e colocação de piercing. A infecção também pode ser transmitida pelo contato sexual e por via perinatal (da mãe para filho), durante a gravidez e o parto, mas essas são vias muito menos frequentes.

Desacreditado

Entre altos e baixos, Jeová começou a se preparar para morrer. “Conversei com a minha família, consultei o meu seguro de vida, me despedi das pessoas que amava. Eu não tinha esperança que receberia um fígado a tempo, a fila enorme era por ordem de chegada. Os estudos por novos medicamentos também não avançavam no Brasil.”

A chegada de um novo estudo que combinava interferon e ribavirina reacendeu sua vontade de viver. Jeová começou a fazer parte do novo protocolo de pesquisa. “O paciente tinha que comprar a ribavirina, gastava em média R$ 840 por mês.”

Interferon peguilado

A incorporação do interferon peguilado parecia um alívio para as pessoas com hepatite C. Jeová considera que não foi tão bom assim. O novo protocolo consistia em injeções semanais. “Tivemos que conviver com fortes efeitos colaterais. A medicação provocava irritabilidade, dores musculares e indisposição. O protocolo durava entre 24 e 72 semanas e, ao fim, apenas cerca de 40% dos pacientes se curavam. Muitos repetiam os ciclos, com algumas variações na medicação, eu mesmo fiz este tratamento duas vezes, sem sucesso.”

O ativista recordou ainda que mesmo com a chegada do medicamento no SUS, houve muita luta para que todos tivessem acesso. “O protocolo era restritivo, não tinha medicamento para todos. Foi um momento bem difícil, emagreci muito, fiquei desanimado. Vi muita gente morrer por negligência do poder público. Fizemos inúmeras passeatas, entramos com várias ações na justiça, acionamos o Ministério Público, a situação era desesperadora.”

Bons frutos

Com muita luta, ele começou a colher alguns frutos. Foi o primeiro no Brasil a ter isenção no imposto de renda retido na fonte. “A mobilização social me fez suportar o vírus, as dores musculares e o cansaço contínuo.”

Em 2014, seu organismo chegou ao limite com os efeitos severos do vírus C. “Eu não tinha mais o que fazer, meu fígado estava descompensado, tive que recorrer a um transplante. A fila pela espera do órgão não era mais por ordem de chegada e sim pela gravidade da doença. Tive encefalopatia, confusão mental e quase cheguei a óbito.”

A cirurgia foi um sucesso, mas mesmo assim ele continuou com o vírus. “Sobrevivi, mas sem um medicamento de cura era claro que logo o novo fígado estaria comprometido.”

No final de 2014 Jeová soube que existia na Europa um medicamento mais potente, sem reações adversas, o Sofosbuvir. “O remédio era caríssimo, não tinha previsão de chegada no SUS. Entrei com uma ação liminar contra a Petrobrás e consegui que eles comprassem o remédio, na época custou R$ 890 mil. Fui curado.”

Em 2015, o sofosbuvir chegou ao Brasil e mais pessoas puderam ser curadas da hepatite C. Combinado com outras drogas modernas, como o simeprevir e o daclatasvir, as chances de cura pularam para 90%, num tratamento que dura entre três e seis meses.

Hoje, o tratamento de cura avançou ainda mais e o Brasil, segundo Jeová, já comprou versões mais recentes do medicamento, como o Harvone e a Epclusa. “O País fez uma compra de 42.930 tratamentos. Temos 12 mil pessoas na fila aguardando o medicamento e todas elas poderão tomar o remédio”, comemorou.

A luta continua

Sua meta enquanto ativista é fazer com que a testagem seja intensificada. “O Brasil se comprometeu a eliminar a hepatite C como problema de saúde pública até 2030, estamos trabalhando para isso.”

O militante comemorou que o acesso ao tratamento no País também foi simplificado. “Hoje, todas as pessoas podem ter acesso ao tratamento de cura, independentemente do grau de fibrose hepática.”

Questionado se a cura é o recomeço da vida, Jeová disse que sim, mas com algumas restrições: “as pessoas estão curando a hepatite C, mas o fígado continua danificado, principalmente de quem sofreu com o grau mais severo da doença, por isso, é preciso continuar cuidando do fígado e fazendo acompanhamento médico. Estamos curados, mas o fígado ainda está comprometido.”

Hoje, a defesa do Movimento Social contra as Hepatites Virais é por uma linha de cuidado e pelo monitoramento das pessoas que já foram curadas. “Estamos alertas.”

Talita Martins (talita@agenciaaids.com.br)

Dica de entrevista

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