A luta global contra a aids está travando devido ao investimento menor, à falta de serviços de saúde vitais em comunidades marginalizadas e ao aumento de novas infecções de HIV em algumas partes do mundo, alertou a Organização das Nações Unidas (ONU) nesta terça-feira (16). No Brasil, os dados revelam que o combate à aids segue a mesma tendência. O País registrou, entre 2010 e 2018, um aumento de 23% no número de novas infecções por HIV, em oito anos. Em números absolutos, o Brasil registrou 44 mil novos casos em 2010. Em 2018, esse número foi de 53 mil. Ativistas ouvidos pela Agência Aids disseram que não estão surpresos com os novos dados e creditaram o aumento a falta de vontade política e investimento nas ações de prevenção. “Algumas medidas urgem para revertermos essa vergonha. Precisamos ampliar o acesso a prevenção, garantir os direitos humanos das pessoas vulnerabilizadas, ampliar empatia, solidariedade política e social – tudo isso imperando uma resposta a aids para além do aspecto da saúde”, disse Salvador Corrêa, da ABIA (Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids). “O movimento social não se assusta com esses ‘novos’ dados, temos acompanhado o aumento de novos casos diariamente em ONGs, redes e movimento de pessoas que vivem e convivem com HIV e acolhem essas novas pessoas. O Brasil já não é referencia mundial na luta contra aids e no tratamento de pessoas vivendo com HIV/aids há anos”, completou Rafuska Queiroz, do Movimento Nacional das Cidadãs Posithivas. Leia o que eles dizem a seguir:

Salvador Campos Corrêa, escritor, ativista do movimento de aids e Coordenador de Treinamento e Capacitação da ABIA: “O relatório da ONU aponta que mesmo com os esforços do Brasil nas últimas décadas, precisamos ainda aumentar a responsabilidade social frente a epidemia de HIV. O país já foi exemplo para o mundo e hoje retrocede como aponta o relatório. Algumas medidas urgem para revertermos essa vergonha. Precisamos ampliar o acesso a prevenção, garantir os direitos humanos das pessoas vulnerabilizadas, ampliar empatia, solidariedade política e social – tudo isso imperando uma resposta a aids para além do aspecto da saúde. Precisamos honrar a luta dos que vieram antes, Betinho, Herbert Daniel, Cazuza, Renato Russo e todos que – de alguma forma – trouxeram o debate sobre a urgência da aids e do HIV. Vivemos tempos desafiadores e é preciso apostar nós – pessoas com HIV, putas, pessoas trans, travestis, gays, índios, negras e negros – pessoas afetas por estigmas e alvo de discriminação em pleno século XXI. Assim como é preciso pensar em políticas para a população em geral tanto no campo da convivência solidária e empatia (vacinados contra fakenews), como com  ampla prevenção nas escolas, em todos os serviços de saúde, distribuição de preservativos em festas. Já fizemos muitas coisas que deram certo e é hora de integração intergeracional de ações solidárias. Precisamos ampliar os recursos financeiros, políticos e sociais de diversas fontes para toda e qualquer ação ética, honesta e focada na melhoria da solidariedade – que engloba prevenção do HIV e tratamento – e também incorpora diversas outras demandas das pessoas estigmatizadas. A ONU por vezes – na tentativa de estimular as respostas dos países, cria fórmulas mágicas incipientes para dar conta da resposta a epidemia. O HIV e aids precisa ser pauta de diversos movimentos sociais, de forma integrada e inspiradora. Precisamos mobilizar a sociedade com tudo que temos – de uma forma nova: investindo na criatividade social. A aids foi exemplo para tantos ativistas de diversas áreas e inspirou a participação no SUS mostrando sua eficácia. É hora de socializar o saber, aprimorar debates, ampliar conhecimentos, ampliar criatividades, artes. Na era das informações, temos munição, força e possibilidades de ações. O Unaids afirma que precisamos de liderança, e de alguma precisamos – mas em outros modelos. No campo dos movimentos sociais emerge  a demanda da liderança compartilhada, integra coletivos, ONGs, YouTubers, redes, articulações. O caminho para recuperar o êxito da resposta brasileira, é o reconhecimento da força social com toda sua diversidade e potência criativa. Resgatemos a aposta no movimento social – potencial transformador da sociedade – na valorização da nossa diversidade, despertando nossas forças e potências que somos em essência no tecido social. Que possamos ter fortalecida a resposta social e a força transformadora que temos. Esse é o caminho para dar a volta por cima. Investimentos no social!  Assim podemos transformar nossas sombras e mazelas sociais em força inspiradora de criação e renascimento, parte a parte, canto a canto. É preciso apostar na sociedade!”

Rafuska Queiroz, psicóloga e apoio de comunicação do Movimento Nacional das Cidadãs Posithivas: “O movimento social não se assusta com esses ‘novos’ dados, temos acompanhado o aumento de novos casos diariamente em ONGs, redes e movimento de pessoas que vivem e convivem com HIV e acolhem essas novas pessoas. O Brasil já não é referencia mundial na luta contra aids e no tratamento de pessoas vivendo com HIV/aids há anos, o sucateamento do SUS, as descentralizações de cuidado, a falta de profissionais multidisciplinar contribuem diretamente para o afastamento de acesso à testagem e, consequentemente, a permanência no serviço de saúde. Há uma manipulação constante quando saem os boletins epidemiológicos no Brasil, fazem uma comparação de 10 anos atrás e não uma linha do tempo de novos casos. Recentemente eu e uma outra ativista (Vanessa Campos) estivemos em um fórum de políticas públicas em HIV/aids com foco em mulheres e trouxemos dados que constam no boletim de 2018, meninas de 12 à 14 anos somam 44 casos de diagnóstico de HIV na gestação no período de janeiro a junho de 2018. Em 2015, 1212 casos e, em 2016, tivemos 1233 casos de diagnósticos em adolescentes e jovens de 15 à 19 anos gestantes. Não temos apontados nesses novos dados as adolescentes, jovens e mulheres como “população chave”, nota-se que ainda tem se tentado justificar a epidemia de forma culpabilizadora em determinada população, e após mais de 30 anos as estratégias de alcance para disseminar informação não avançam, temos programas como o Saúde e Prevenção nas Escolas que são ignorados pelas escolhas, o tabu de falar de prevenção, de saúde sexual e reprodutiva não chegam. Existe uma falácia em dizer “os jovens tem informação” ou “jovens se infectam porque não viram a epidemia” quando a corresponsabilidade de novos casos está na sociedade que não aborda o assunto nas escolas, em casa, na família, nas igrejas, nas universidades! Enquanto falar de prevenção não for vista como promoção de saúde, linha de cuidado nas fases da vida no Brasil, novos casos continuarão surgindo e os boletins epidemiológicos estão aí para mostrar que não são novos casos em “população-chave”, pessoas que se relacionam sexualmente podem se infectar com IST’s, sejam em relações casuais, em casamento, namoro… Então, afinal de contas que ações de prevenção a população brasileira tem feito? Nós do movimento social não temos pernas para alcançar todos/todas, ainda mais com apoio financeiro ZERO. Quem hoje é ativista faz por amor a causa, as ONGs que atuavam com promoção, prevenção e cuidado estão fechando as portas. A aids deixou de ser vista como primordial, o governo atual desfez o Departamento de Vigilância Prevenção e Controle das IST, do HIV/Aids e das Hepatites Virais (DIAHV), um departamento antes focado diretamente a estratégias de combate a epidemia de HIV/aids e Hepatites Virais, invisibilizando o HIV/aids e as demandas especificas. Se os dados de 2018 estão na contramão, espere piora nos próximos boletins com relação ao Brasil.”

Américo Nunes Neto, diretor do Instituto Vida Nova e coordenador do Mopaids (Movimento Paulistano de Luta contra a Aids): “Os dados da ONU, ainda que o Brasil esteja na contramão do mundo, é importante aprofundar essa análise a partir do relatório da ONU e outros indicadores. É importante também rever como a epidemia de aids se apresenta na incidência e dimensão do país, características e entre as gerações mais jovens, populações-chave e população em geral, considerando práticas sexuais e comportamentos como fatores importantes por terem grande influência em como a aids se propagará nos próximos anos. Os avanços das novas tecnologias de prevenção do HIV, a exemplo também da oferta do teste rápido, pode se considerar um indicador de maior detecção do vírus, porém faz-se necessário maior atenção para os dados de mortalidade por aids. Precisamos de estudos que nos mostre porque as pessoas continuam morrendo por aids, quem são essas pessoas, quais as consequências que levaram a morte, etc. Os dados implicam também na qualidade de prevenção e da assistência, quais narrativas e informações estão sendo ofertadas para a população? Isto é suficiente? É sabido que muitas pessoas não conseguem fazer a leitura ou entender as informações sobre prevenção, considerando que a as novas tecnologias de prevenção sejam importantes, porém podem causar a banalização da prevenção. É necessário novas estratégias de informação e maior investimento financeiros para as ONG/aids para que se haja maior engajamento na busca de novas ideias e estratégias de prevenção ao HIV e comunicação. Há que se considerar também que em relação aos outros países como os investimentos nas políticas públicas de saúde são implementados.

Lucian Ambrós, idealizador do projeto Posithividades: “Enquanto não mudarmos a forma que informamos sobre a doença, não vamos mudar os números de HIV do Brasil e do mundo. Estar indetectável é um dos caminhos que temos para barrar o HIV, porém, enquanto a comunicação não for mais transparente e continuar com “o tabus” que envolve o assunto ou com pouca divulgação, continuaremos andando em círculos. A comunicação que existe do HIV ainda é muito estigmatizante e isso faz com que as pessoas continuem se infectando. O movimento de HIV/aids também precisa se unir mais, principalmente os mais antigos que ainda tem resistência em falar a PrEP e PEP.”

Carla Diana, secretária política da Anaids e coordenadora da Associação Prudentina de Prevenção a Aids: “Devido a algumas questões pontuais em desacordo com o Movimento Nacional de Luta Contra a Aids, o governo anterior já nos preocupava, mas o controle social, até então era exercido de maneira legítima e respeitada pela gestão. A partir de 2019, ainda nos primeiros meses da nova gestão federal, já evidênciamos um futuro incerto e muito difícil, pois a visão conservadora deste governo caracteriza um problema, dificultando nossas ações de trabalhar educação sexual dentro dos espaços escolares, inviabilizando o nome aids enquanto política pública, entre outros.  As questões que envolvem sexualidade e prevenção devem ser discutidas de maneira transparente com a população, assim como demais pautas que dialogam e constroem juntas políticas públicas para o enfrentamento da epidemia. Considerando esse cenário, me incomoda profundamente o fato do Brasil estar na contramão das estatísticas mundiais, mas não me espanta os motivos pelos quais estamos nesse caminho. É preciso que a sociedade entenda suas responsabilidades diante dessas informações e nos ajude a discordar desse modelo de gestão atual, recusando os retrocessos e participando conosco na cobrança por respostas efetivas, que compreenda a realidade que estamos vivenciando.”

Vando Oliveira, da Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/Aids do Ceará: “Com um aumento de 21% de novos casos em apenas 08 anos, e com os retrocessos da politica de aids brasileira é difícil e preocupante pensar onde vai chegar a epidemia de aids em pouco tempo. Se o modelo que tanto se propagou durante anos ainda existisse não teríamos números crescente e sim uma diminuição nos números em geral. Se somarmos este aumento e multiplicarmos pela invisibilidade que o governo joga a aids, começando pelo próprio nome do departamento, logo a epidemia de aids no brasil vai voltar sim aos anos 80. Olhar para um vírus que é invisível e deixar de ver as pessoas que diariamente morrem de aids, isso por si só mostra a falta de compromisso do nosso governo. Mudem, aumentem e melhorem o  meu tratamento, só não quero que mudem o meu nome, o vírus é do HIV mas, os internamentos e óbitos são de pessoas doentes que morrem de aids.”

Rodrigo Pinheiro, presidente do Foaesp (Fórum de ONGs/Aids do Estado de São Paulo): “Os dados apresentados demonstram o que a sociedade civil vem cobrando do governo há muito tempo. A cada ano o retrocesso no combate a epidemia de aids vem aumentando e a tendência é aumentar mais ainda com a falta de visibilidade da doença no Departamento. É preciso  discutir com o Ministério da Saúde as politicas sociais, o enfrentamento da epidemia, a questão da aidsfobia, enquanto não enfrentarmos o estigma e a discriminação e não combatermos a homofobia, a gente não vai conseguir fazer um enfrentamento de acordo. Com as atuais políticas implementadas pelo próprio Ministério da Saúde, estamos vivenciando um grave retrocesso, o que tem nos deixado muito preocupados.”

Rafael Sann, da Rede de Jovens Vivendo e Convivendo com HIV/Aids: “O triste relatório do Unaids vem num momento político mais crítico do programa brasileiro de aids, vimos uma campanha de carnaval  focada na prevenção do homem, que não se comunica nem um pouco com as populações-chave que o relatório tanto enfatizou, além da extinção do Departamento Nacional de HIV/Aids e ISTs. Se o relatório já é preocupante, agora fica ainda mais. Estamos num momento onde deveríamos estar ampliando as ações de prevenção, o enfrentamento da epidemia deveria estar saindo apenas do campo da saúde, indo para assistência social e principalmente na educação, esse deveria estar sendo a pauta neste momento crítico. Porém, os esforços da militância deve que se voltar ao nítido desmonte do SUS, a nítida necropolítica. Os departamentos estaduais e municipais de HIV/aids também tem que assumir programas de prevenção, não apenas gestão, como, por exemplo, o ambulatório da Juventude de São Paulo e Belo Horizonte de mãos dadas contra aids. No início de agosto vamos ter a 16ª Conferência Nacional de Saúde, um espaço que devemos ocupar e levar essa pauta. Além do fortalecimento de nossas Redes, movimentos e ONGs, através do Enong.”

Carlos Henrique de Oliveira, da Rede de Jovens São Paulo Positivo e do coletivo Loka de Efavirenz: “O aumento da epidemia no Brasil mostra um processo de retrocesso em curso no que se refere à saúde preventiva e mercantilização da saúde. A transformação da saúde num serviço/mercadoria e seus sucessivos desmontes, com cortes de orçamento ferozes na última década, fez com que a atenção básica, sobretudo, não conseguisse cumprir o seu papel na prevenção de epidemias como a aids e outras IST. Devemos sempre lembrar que essa década de 2010 foi um decênio de crises política, social e econômica no país, e não podemos desgrudar o quadro epidemiológico desses fatores. Além do estigma e racismo existente na sociedade brasileira, houve importantes derrotas como o congelamento dos gastos públicos por 20 anos em 2016, e não é coincidência que no primeiro ano que o tal teto foi válido para a saúde, a saber 2018, tenha tido um aumento de novos casos: 53 mil novos registros, mediante a média anterior de cerca de 45 mil… Se o Brasil continuar com o aprofundamento neoliberal e o avanço no discurso reacionário neofacista, nós teremos uma explosão na epidemia e, para nossa tristeza, teremos mais certeza que a aids é mais um recorte do genocídio das populações negra, pobre e LGBTI+ do país.”

Rico Vasconcelos, infectologista: “A minha leitura sobre o relatório do Unaids não é de crítica ao governo atual. E sim de bons resultados das últimas gestões do Programa Brasileiro, pois estamos já há quase 10 anos tentando melhorar a nossa detecção dos casos. Assim, é esperado que tenhamos um momento de aumento dos casos detectados. Com posterior vinculação ao tratamento e indetecção de carga viral.  Veja que temos boas taxas de indetecção no Brasil.  Assim, a notícia não é ruim e sim boa. Precisamos encontrar os casos para poder tratá-los. Entendo que toda a crítica e vigilância deve ser feita com a gestão atual, mas esse não é o gancho certo para isso, ao meu ver.”

 

Talita Martins (talita@agenciaaids.com.br)

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Lucian Ambrós

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