Freira da Congregação de Jesus, irmã Mônica de Moraes, 75, fez voto de castidade há cerca de 50 anos, mas de uma coisa não abre mão na escola católica que dirige na zona sul de São Paulo: das aulas de orientação sexual.
E o faz, afirma, por coerência com a sua fé. “A igreja é a favor da vida”, diz. “Estamos protegendo os alunos para que evitem doenças e tenham uma vida digna.”
Na mira após ataques do presidente eleito, Jair Bolsonaro (PSL), a educação sexual tem no Brasil diferentes formatos de acordo com a escola —de horários exclusivos na grade a tratamento interdisciplinar. Em regra, porém, as instituições abordam temas similares: puberdade, doenças sexualmente transmissíveis, gravidez, violência e privacidade em tempos de nudes e pornografia na internet.
De forma geral, segundo colégios consultados pela reportagem, os primeiros temas abordados são relativos ao corpo e suas transformações. Com o passar do tempo, são tratados assuntos como relacionamentos, métodos contraceptivos, consentimento e orientação sexual.
As discussões se inserem em um quadro de aumento na taxa de detecção da aids entre meninos de 15 a 19 anos e de persistência nos índices de gravidez na adolescência.
A violência sexual é outro problema na faixa etária. Segundo registros do SUS, 49,5 mil meninas de 10 a 19 anos sofreram estupro de 2011 a 2016, média de 23 por dia. Em 58% dos casos, o crime ocorreu na residência. Em 36%, familiares ou parceiros íntimos foram os prováveis autores.
Em diversas declarações, porém, Bolsonaro disse ser contra a abordagem da sexualidade nas instituições de ensino. “Quem ensina sexo para a criança é o papai e a mamãe. Escola é lugar de aprender física, matemática, química. Fazer com que no futuro tenhamos um bom empregado, um bom patrão e um bom liberal”, afirmou em novembro.
Apontado como seu ideólogo, o escritor Olavo de Carvalho disse em entrevista à Folha na semana passada que, “quanto mais educação sexual, mais putaria nas escolas”. “Está ensinando criancinha a dar a bunda, chupar pica, espremer peitinho da outra em público. Acham que educação sexual está fazendo bem, mas só está fazendo mal.”
A Câmara dos Deputados, por sua vez, discute uma proposta que restringe a inclusão do tema nas escolas. Trata-se da versão mais recente do projeto Escola sem Partido em tramitação. Ela prevê que os valores familiares devem ter “precedência sobre a educação escolar nos aspectos relacionados à educação moral, sexual e religiosa”.
Determina ainda que não serão adotadas políticas que usem os termos “gênero” e “orientação sexual” ou que apliquem a chamada “ideologia de gênero” —expressão repudiada por educadores, cunhada por religiosos para se referir a discussões sobre a construção social do papel do homem e da mulher e a identificação das pessoas com um gênero ou outro.
Tirar a sexualidade da escola vai contra relatório deste ano da Unesco, braço das Nações Unidas para a educação. O documento contém uma revisão de estudos do mundo todo feita por pesquisadores da Universidade de Oxford.
Eles analisaram pesquisas que atendem a parâmetros científicos e concluem que a inclusão curricular de aspectos sociais, cognitivos, físicos e emocionais da educação em sexualidade contribui para o adiamento do início da vida sexual, a redução do número de parceiros e o aumento do uso de preservativos e outros métodos contraceptivos.
“Muitas vezes se pensa que a educação pode estimular o ato sexual, mas é o contrário. Trata-se muitas vezes de estabelecer limites, dizer que tem coisas que a criança só vai fazer na idade adulta”, diz Elizabeth Sanada, psicóloga do Instituto Singularidades.
Olavo de Carvalho errou, também segundo a irmã Mônica. “A fala mostra que ele não teve formação adequada”, diz. O colégio dirigido por ela, o Beatíssima Virgem Maria, no Brooklin, foi um dos primeiros a tratar do tema, em um trabalho que prefere chamar de orientação sexual do que de educação sexual.
O projeto foi implantado em 1994, após uma aluna da oitava série engravidar e esconder a gestação dos professores e da família.
Desde então, os temas de sexualidade são abordados a partir do sexto ano por educadores com formação específica. Não houve mais casos de alunas grávidas na escola, e quase não aparecem nas carteiras e banheiros desenhos de órgãos genitais, como era frequente, afirma a psicopedagoga Maria de Fátima Avelar.
A abordagem parte do interesse e de perguntas dos alunos. O primeiro tema que aparece é o corpo. Depois, relacionamentos, doenças, identidade de gênero e outros.
“Não há choque de valores”, diz Fátima. “A gente posiciona os valores, tanto os da igreja como os outros.” Segundo ela, os pais têm papel central. “Quem fala o caminho que o aluno deve seguir é a família.”
A inclusão do tema na escola ganhou relevância não só no Beatíssima nos anos 1990, mas no país todo, junto com o receio da aids. Em 1997, o então ministro da Educação Paulo Renato Souza (PSDB) inseriu nos parâmetros curriculares nacionais a orientação sexual como tema a ser abordado de forma transversal.
No Colégio Bandeirantes, a sexualidade está inserida em um programa que inclui desenvolvimento de habilidades socioemocionais e prevenção às drogas. Os professores passam por formação específica. São utilizados filmes e outras dinâmicas para a discussão, diz Estela Zanini, coordenadora de convivência.
No Colégio Rio Branco, o assunto entra de forma planejada em três momentos. No quinto ano, são abordadas questões sobre o corpo. Na unidade da Granja Viana, há um trabalho de resposta a perguntas anônimas feitas por escrito pelos alunos.
A sexualidade volta a ser abordada no oitavo ano e, depois, no segundo do ensino médio. Nessa série, o trabalho começa com uma espécie de jogo para que se descubra o que os jovens já sabem. Em um mundo com tanto acesso à informação, o resultado surpreende, afirma Esther Carvalho, diretora-geral da escola.
“Eles estão muito prontos para a ação, mas nem tanto por dentro do conhecimento”, diz. Com base no diagnóstico inicial, são passadas orientações sobre prevenção de gravidez e DST, por exemplo. Sem juízo de valor, diz Esther. “O valor tem que vir da família.”
Psicólogo e educador, Antônio Carlos Egypto, que ajudou a implantar projetos de orientação sexual em diversos colégios, diz que a atuação da escola e dos pais deve ser complementar. “O papel da família é educar a criança dentro dos valores que ela acredita e ser clara em relação a isso. Dizer que o correto é casar virgem ou não, por exemplo. Já a escola vai passar informação e dizer que existem várias visões.”
Mas ele ressalva. “Muitas famílias têm dificuldade de lidar com isso dentro de casa, principalmente aquelas com educação precária”, afirma.
Promotora no Distrito Federal, Danielle Martins Silva ressalta que, em muitos casos, denúncias de violência sexual contra crianças chegam à Justiça por meio de educadores. “O discurso que vem sendo construído, contrário à atuação da escola na questão de direitos sexuais e reprodutivos, favorece o abusador”, diz.
Autor de um dos projetos incorporados à discussão do Escola sem Partido, o deputado Izalci Lucas (PSDB-DF) diz que a principal preocupação é não incentivar a sexualização precoce, e que questões como o abuso podem sim ser tratadas, mas sem estratégias que envolvam nudez na escola.
“Vi vídeos de pessoas nuas, demonstrando o ato sexual no quarto ano da escola. Isso não é algo sério”, afirma. “Deve ter prevenção de gravidez, mas de forma natural, sem forçar a barra. A grande maioria dos brasileiros é de cristãos, é preciso respeitar.”
Outras abordagens sobre sexualidade no ensino
Rede estadual de São Paulo
Capacita educadores para atuação em temas como prevenção de doenças sexualmente transmissíveis e gravidez
Rede municipal de São Paulo
Tema é inserido em ciências, com respeito a ‘ideias trazidas pelos estudantes a partir da cultura familiar’
Colégio Oswald de Andrade
Temas são tratados em aulas de ciência e psicologia
Colégio Santa Maria (SP)
Projeto no 7º e 8º ano aborda tema com foco em mudanças do corpo e nos sentimentos
Colégio Graphein (SP)
Alunos têm contato com tema a partir dos 12 anos em aulas de orientação educacional
Fonte: Folha de S. Paulo