No dia 6 de abril de 2018, Marina Reidel pegou nas mãos o símbolo de uma conquista: uma nova certidão de nascimento, na qual se lê “sexo: feminino”. O direito de ter o nome e o sexo alterado no documento, obtido na Justiça, é só mais uma entre tantas que foram as conquistas desta professora que compartilhou sua transexualidade dentro da sala de aula, diante de olhares curiosos dos alunos e recriminadores dos colegas.
Ela foi a primeira trans a fazer mestrado na faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), concluído em 2013, com uma dissertação quase autobiográfica: “A Pedagogia do Salto Alto”, em que analisa as histórias de vida de professoras transexuais e travestis.
Hoje, aos 47 anos, Marina está disputando uma vaga no doutorado, também em educação. Pretende estudar o tratamento social de crianças transexuais e travestis, entre 7 e 14 anos, na escola. “No Brasil, não se pode falar de sexualidade de gênero na sala de aula. Na medicina, ninguém se mete, mas na educação tem todo o tipo de pressão da sociedade preconceituosa e heteronormativa. Ainda vivemos sob dogmas religiosos, apesar de o Estado ser laico”, disse, em entrevista ao HuffPost Brasil.
Desde a conclusão do mestrado, tornou-se uma referência no tema da identidade de gênero. Andou pelo Brasil inteiro falando em eventos. Em 2016, foi convidada a assumir a Diretoria de Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais do Ministério dos Direitos Humanos. Ciente de que sua passagem pelo governo federal é temporária, lamenta a morosidade da burocracia da máquina pública, mas orgulha-se das campanhas que já conseguiu botar na rua, como a Deixe seu Preconceito de Lado. Uma das peças diz “Se você souber que foi uma trans que preparou seu prato, altera o sabor?”. Ela completa: “Não temos um ideal, temos uma causa, que é uma questão de sobrevivência. E os mais vulneráveis são os travestis, que estão na prostituição, no tráfico. Vão para a rua porque não tem uma loja que te dê um emprego de balconista”.
A professora conta que já houve casos de pais que pediram para que seus filhos não assistissem suas aulas. Marina fez concurso para professora no Rio Grande do Sul há mais de 20 anos. Antes, tinha cursado o magistério e já dava aulas nas séries iniciais em Montenegro, cidade onde nasceu, a 50 quilômetros de Porto Alegre – no mesmo colégio onde estudaram ela, os irmãos, os sobrinhos. Lá, era “o professor”.
A gaúcha cresceu em uma família humilde. A mãe era diarista e o pai trabalhava na indústria. É a caçula de cinco filhos. “Éramos dois irmãos, duas irmãs e um OGNI: objeto gay não identificado”, conta. Foi a única que concluiu o ensino superior.
A educadora não perde o bom humor nem ao falar de preconceito. “A gente levava pedrada e caixotada na rua, mas não se falava nada disso em casa. Eu me montava às vezes, na calada da noite. No dia a dia, era discretinha, mas hoje sei que dava toda a pinta”. Nesta época, houve dois casos de pais que pediram para que os filhos não assistissem suas aulas. As desculpas eram diversas, mas a verdade é que não queriam as crianças em contato com um gay. “As pessoas acham que a gente transpira sexualidade 24 horas por dia. Que gay não vai à feira, não lava roupa, nada.”
A gaúcha cresceu em uma família humilde. A mãe era diarista e o pai trabalhava na indústria. É a caçula de cinco filhos. Foi somente ao deixar Montenegro que a professora abraçou sua homossexualidade, em 2003. E levaria mais tês anos para apropriar-se a identidade feminina. “Fui de férias para a Europa. Saí daqui de terno e gravata e voltei montada”, conta. Então, decidiu fazer uma série de procedimentos estéticos para ficar “mais mulher”, segundo ela. Depois, tirou uma licença da escola onde lecionava artes em Porto Alegre e voltou, um mês depois, “no salto” – e justo no dia do conselho de classe, quando catalisou olhares de reprovação dos colegas professores. Já os alunos, adoraram. “Até achei que iam me tirar da sala de aula, colocar na biblioteca ou coisa assim. Por muitos dias, não consegui dar aula, passava todo o período respondendo às perguntas deles. Queriam saber tudo”, lembra.
Em 2013, a Justiça concedeu a Marina a carteira de identidade com o nome feminino, mas negou a alteração na certidão de nascimento. “Entrei na Justiça de novo, e, quatro anos depois, o mesmo juiz me deu a alteração de gênero. Aí foi o Ministério Público que recorreu”, revela. Marina foi adiante, até tornar-se uma das primeiras mulheres trans com o registro civil alterado sem ter feito cirurgia de mudança de sexo – direito que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) veio a reconhecer no ano passado, a partir de um caso semelhante ao da professora.
“Há 12 anos, eu até pensava em fazer (a operação). Hoje, estou muito bem resolvida. Até o juiz já disse que sou mulher!”. A próxima batalha, Marina já sabe qual é: a aposentadoria. Poderia estar aposentada como professora (25 anos de serviço), mas não como professor (30 anos) – um problema que deve se apresentar a muito mais gente em um futuro próximo. Marina está preparada para ser precursora de novo, e já convocou seu advogado. “Vai ser uma briga de foice”.
Fonte: HuffPost Brasil