15/03/2018 – 14h10
Imagine receber um salário mínimo mensal de 26 reais. Agora, imagine que para obter um pacote de 1kg de arroz seja necessário trocá-lo por 12 reais. Ou ainda, que 1kg de frango tenha o valor de 14 reais. Como sustentaria sua família? É essa a indagação a que os venezuelanos se submetem a cada dia. O salário mínimo no país do presidente Nicolás Maduro sai pela bagatela de 797.510 bolívares. Com 10 reais é possível 300 mil em maços de dinheiro.
Nos hospitais, os diagnósticos são feitos normalmente. Só não há tratamento. Se precisar de uma injeção, desembolse no mínimo 1500 bolívares. As prateleiras das farmácias estão vazias. Pacientes com Infecções Sexualmente Transmissíveis não têm onde retirar medicamentos. A garantia do tratamento gratuito se dissolveu junto a economia do país. Os mais ricos importam remédios. Dólares em troca de saúde. Grupos de soropositivos venezuelanos estão se reunindo e vendendo o que podem para deixar seus lares em uma saga por antirretrovirais.
Por isso, inclua na lista de perguntas acima a seguinte questão: Para onde você iria caso precisasse salvar sua vida? A resposta para mais de 40 mil de venezuelanos é: para o Brasil.
O caminho
É uma linha imaginária que divide a fome certeira da possibilidade de comer. Porque entre viver em uma casa cheia de fome e viver sem casa com esperança de obter alimento, o desespero faz a escolha.
A maioria dos venezuelanos tem a extravagância de ultrapassar a fronteira com dois reais na mão. Chegam até a cidade fronteiriça de Pacaraima, no estado esquecido pelos noticiários nacionais chamado Roraima. Ali, no extremo norte de um país continental, eles começam de novo. Saem de cidades como Caracas, Bolívar, Maturín, Puerto la Cruz. Quando têm sorte, conseguem alguns milhões de bolívares para pagar a passagem de ônibus pela estrada que corta a Venezuela de norte a sul e no fim vira Brasil. Quando a sina lhes dá uma rasteira, cruzam o país a pé ou de carona.
A cidade de Santa Elena de Uairén é o primeiro alvo. Dali são 17 km até “la línea”, como dizem por lá, até a fronteira. Local que demarca o que pra eles não é o fim de um território, mas o fim da desesperança.
É no espaço de asfalto que divide os dois países, conhecido como terra de ninguém (porque não é nem território brasileiro, nem chão venezuelano) que ficam os cambistas. Lá, os imigrantes descobrem que as dezenas ou até centenas de notas que carregam nas pequenas mochilas, se transformam em um ou dois papéis de dinheiro brasileiro. Às vezes, recebem em troca de milhares de bolívares, uma nota de cinco, de dez ou vinte reais. É com essa quantia que recomeçam. Insuficiente sequer para comprar um bilhete de ônibus até o destino final, a cidade de Boa Vista.
O refúgio está previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos e na Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados. Toda e qualquer pessoa que esteja sujeito, em seu país, a grave e generalizada violação de direitos humanos, tem o direito de pedir proteção em outro país. Além disso, em 1997 foi sancionada no Brasil a lei nacional de refúgio. Fechar a fronteira, portanto, seria não apenas desumano, mas ilegal.
A BR-174, caminho dos refugiados, desemboca na praça que, talvez por ironia, se chama Simon Bolívar, herói revolucionário latino-americano conhecido como “o libertador”. Não é por acaso que este é o lugar onde eles se abrigam. Por ali se chega em Boa Vista e segue para o restante do Brasil. Ao lado, o terminal internacional de ônibus não só é responsável pelo desembarque dos recém chegados, como pelo banho dos que estabeleceram sua mais nova residência em barracas improvisadas ou papelões que substituem o colchão.
Algumas árvores impedem que o sol equatorial os sufoquem. Sem qualquer semáforo ou sinalização os carros passam em velocidade acelerada. Quando aventurados, os veículos desviam de quem ousa atravessar, mas raramente param. Houve até o caso de um menino refugiado atropelado.
“Eu tenho fome”
Alguns dos refugiados são letrados e graduados, outros têm até mestrado. Há também aqueles que desconhecem as letras do alfabeto. Seu Asbel Brito traz consigo uma pequena pasta marrom com os diplomas e o currículo. Era professor de literatura na Venezuela. Conta ele que as primeiras palavras que aprendeu em português foram para formar a frase “eu tenho fome”.
Em seus antigos lares, o alimento base era a yuca – massa de mandioca amassada, que é para render mais. Ovo já era demasiado luxo. 120 mil bolívares por um alimento que não se pode dividir não vale a pena. Tem que render. Às vezes em quantidade suficiente para até oito pessoas de uma mesma família.
Raúl Serano exibe, sob piadas, o excesso de pele que lhe restou depois de dois anos comendo apenas a yuca. “Lá, nós éramos todos gordinhos”. A evidência é empírica. Sua roupa, que antes parecia diminuta, hoje comporta tranquilamente outras duas pessoas de mesmo tamanho. Ele é um dos que vieram desafiando a resistência das costas e dos pés preenchidos por bolhas, durante os 215 km desde a fronteira até a cidade de Boa Vista.
Abrigos superlotados
Além da praça, a capital roraimense tornou-se sede de três abrigos. Um deles, no bairro da Pitolândia, é a nova morada de 600 indígenas venezuelanos. Metade dos que se refugiam ali são crianças. Já o abrigo Tancredo Neves, que se destina aos criolos, como se referem aqueles que não são indígenas, já se somam 700 pessoas em um espaço adequado para 180. O terceiro abrigo, no bairro Operários, é mais tranquilo e mais distante também, são 206 pessoas atendidas. Lá, o menino Marcos Antônio, de oito anos, ao ver uma câmera já se prontificou a falar. “Quero viver no Brasil por milhões e milhões de anos. Porque há muitas coisas que gostei aqui. Tem Mercado, muitas frutas, refrigerante, doces gostosos. Parecia um centro comercial porque tinha muita coisa para comprar.”
O paraíso de Marcos tem nome, endereço e CNPJ. Os supermercados brasileiros são o suprassumo da jornada venezuelana.
Nem Marcos, nem Raúl, nem Abel sabiam, até se depararem com o pedaço de papelão em que passaram a dormir assim que chegaram no Brasil, que o governo ainda não está preparado para a maior crise migratória da América Latina. O sarampo foi sagaz e um surto da doença foi o primeiro alerta para que o Secretário Estadual de Saúde de Roraima, Marcelo Batista, reconhecesse que a população roraimense não estava se vacinando. Pelo menos 300 mil roraimenses não tomou a tríplice viral quando criança, como recomendado pelo Ministério da Saúde.
Aids e sífilis não são prioridades
Doenças como a aids ficaram em segundo plano. Com tantas pessoas aglomeradas em abrigos, não há sequer uma ação de testagem para qualquer infecção sexualmente transmissível. Por consenso sabe-se que há. Só não se sabe quem está infectado. Concorrendo com outras doenças como febre amarela e malária, os silenciosos HIV e sífilis perdem a notoriedade.
No Serviço de Atendimento Especializado de Boa Vista, 22 venezuelanos começaram a fazer tratamento para o HIV em 2018. Desde o ano passado, 80 imigrantes se cadastraram no service e mais da metade (46) estão em tratamento. O coordenador do Programa Municipal de DST/Aids, Sebastião Diniz, conta que há pacientes que vem da cidade de Maracaibo, há 2.057 km de Boa Vista, para pegar antirretrovirais e depois retornam. Mesmo com o aumento dos novos casos, o HIV ainda não é prioridade. “A expectativa é de que, se o sarampo der trégua, ações para outras doenças ganharão espaço”.
No bairro do Caimbé, conhecido local de prostituição, o número de meninas e mulheres nas esquinas crescem em progressão geométrica. Os indígenas desconhecem preservativos. As profissionais do sexo, que encontram no novo trabalho a única forma de sobrevivência, desconhecem as possibilidades de prevenção.
A ajuda dos brasileiros é atrapalhada, mas salva. É o que lhes retira da fome, da chuva, da miséria. Mulheres grávidas são enviadas a contragosto para o fim da fila de comida porque os voluntários não entendem o que significa a palavra “embarazada” em espanhol.
A falta de controle e estrutura na capital que mais tem ares de interior contribuem significativamente para o aumento do desespero e esmorecimento. Se perguntar a qualquer venezuelano o que ele busca no Brasil, ele te responderá: trabalho. “De todo lo que sea”. Qualquer trabalho serve. Falta refeição em quantidade suficiente, informação, saneamento, testagem. Falta dignidade. Ainda assim, falta menos do que lá. É por isso que, para eles, é melhor tentar. Afinal, para onde você iria se tivesse que salvar sua vida? Há seres humanos do outro lado na linha imaginária que ainda não sabem. Mas a reposta será: para o Brasil.
Dica de entrevista
Secretaria Estadual de Saúde de Roraima
Tel.: (95) 2121-0575
Programa de DST/Aids de Boa Vista
Tel.: (95) 98112-3508
Jéssica Paula (jessica@agenciaaids.com.br)
Confira nesta sexta-feira (16), a segunda reportagem da série “Aids e refugiados em Roraima”.