“Era no ano de 94. Eu tinha que tratar os dentes, o dentista não queria me atender. Um outro profissional disse que eu só poderia me consultar aos sábados porque não poderia colocar os outros pacientes em risco. Ainda tinha muito essa questão de não poder compartilhar alimentos. Quantas e quantas vezes eu ofereci sorvete para amigos que sabiam que eu vivia com aids, e esses amigos ‘nunca gostavam de sorvete’.” Estas são algumas das situações permeadas por estigma que Jacqueline Côrtes, integrante do Movimento Lationamericano e do Caribe de Mulheres Posithivas, relata ter vivido por ser uma mulher transexual vivendo com HIV.
“De 98 a 2001 eu estava fazendo o processo de transição e tratamento hormonal no Hospital das Clínicas de São Paulo. Toda a equipe sabia que eu era uma mulher vivendo com aids. Isso não foi impedimento, inclusive para uma cirurgia do coração. No entanto, no dia em que fui internada, o cirurgião urologista perguntou: ‘você tem aids? Então não vou operar a senhora. Eu não vou operar uma pessoa vivendo com aids de maneira nenhuma.’ Ele disse que a cirurgia do coração era uma questão de necessidade. ‘Essa cirurgia é eletiva, a senhora não precisa fazer se não quiser.’ Aí levantei e disse que essa cirurgia é eletiva para ele, para mim, é uma questão de vida ou morte.”
Para Jacqueline, esse tipo de experiência pode deixar de ser corriqueira se as pessoas transexuais tiverem visibilidade. “Com o tempo fui mudando, troquei meu nome e o médico foi me enxergando como mulher. Por fim, ele mesmo disse: ‘Jacqueline, eu aprendi muito com você. Depois de você eu operei várias mulheres vivendo com aids.’”
As consequências do HIV
“A gente nota que há comorbidades sobre as quais não temos estudos. Há muitas mulheres vivendo com aids e que tem câncer de mama, do intestino, de pulmão, de útero e a gente não tem estudo sobre isso. Até que ponto esses cânceres tem relação com a aids?”
Jacqueline também ressalta que a saúde mental das mulheres, assim como a saúde sexual reprodutiva não tem recebido atenção. “Nós apenas temos o planejamento familiar. Mas e a saúde sexual? E a questão da nova demanda em relação à identidade de gênero? Questões de homens trans. Homens trans que querem ser pais. O que temos de serviço que possa abarcar toda essa demanda? A situação do Brasil está capenga, especialmente para mulheres. Além disso, há o estigma, a discriminação, a violência contra mulher”, afirma.
Para a ativista, os poucos números que dissertam sobre a saúde da mulher representa problemas mais estruturais na sociedade, como a violência contra mulher e o machismo que há entorno dessa realidade. “A população ainda não entendeu o que é feminicídio. Porque se mata mulher tanto assim? A gente não vê nos jornais que homens apanharam ou foram violentados por mulheres. Então vemos que isso é reflexo desse machismo, dessa misoginia. Isso deixa a mulher em maior vulnerabilidade.”
Redação da Agência de Notícias da Aids