O uso da PrEP (Profilaxia Pré-Exposição), um método relativamente novo de prevenção à infecção pelo vírus HIV, foi alvo recente de grande discussão no Twitter. Um internauta dizia que o método, sozinho, sem o uso de preservativo, seria uma alternativa para prevenir a infecção pelo HIV e clamava: “Chega da ditadura da camisinha dos anos 90”.
Pesquisas mostram que, quando tomada diariamente, a PrEP –combinação dos medicamentos tenofovir e entricitabina, que bloqueiam caminhos que o HIV usa para atacar o organismo– reduz drasticamente o risco de contrair HIV (dados apontam de 90% a até 99% de eficácia). A OMS (Organização Mundial de Saúde) recomenda, desde 2012, a oferta da PrEP como uma das estratégias para prevenir a aids. O centro da discussão envolve um possível abandono da camisinha pelas pessoas vulneráveis ao vírus HIV já que a PrEP não protege contra outras doenças sexualmente transmissíveis (como gonorreia e sífilis) e, portanto, não substitui a proteção trazida pelo preservativo.
A quem a PrEP é destinada?
A profilaxia é oferecida pelo SUS de forma gratuita apenas ao público que tem mais chances de entrar em contato com o HIV: gays e outros homens que fazem sexo com homens, pessoas trans, trabalhadores do sexo e pessoas que estejam em uma relação em que somente um dos parceiros tem o vírus.
Alexandre Grangeiro, pesquisador da Faculdade de Medicina da USP e coordenador do Projeto Combina, acredita que, assim como aconteceu com os medicamentos antirretrovirais (usados para tratar o HIV), a PrEP se tornará mais barata à medida que laboratórios fabricarem versões genéricas. “A PrEP ainda é recente no Brasil e é oferecida apenas a esse público vulnerável pelo SUS, pois, do ponto de vista coletivo, partimos do pressuposto de que há uma diminuição de 20% nas taxas de incidência do vírus.”
Para outras pessoas que quiserem fazer uso da PrEP, é possível comprar o medicamento sem receita, mas o valor não é nada barato: custa cerca de R$ 300.
“Para quem não faz parte do grupo vulnerável e não pode comprar PrEP, o preservativo ainda é a única forma efetiva de prevenir o HIV e as ISTs [Infecções Sexualmente Transmissíveis]”, afirma o infectologista Luiz Francisco D’Elia Zanella, do Centro de Pesquisas Clínicas da Faculdade de Medicina da USP.
PrEP + preservativo
Zanella afirma que a PrEP é um mecanismo a mais no combo de proteção, junto com o preservativo. “No entanto, a questão vai além e tem a ver com o comportamento de cada um”, diz o infectologista. “Sabemos que há um número de pessoas com dificuldades em usar camisinha. Então, é importante se proteger dentro da sua forma de viver.”
Júlio Moreira, diretor do Grupo Arco-íris, do Rio de Janeiro, e coordenador de Mobilização Comunitária do ImPrEP (Projeto para Implementação da Profilaxia Pré-exposição ao HIV no Brasil), da Fiocruz, foi um dos voluntários que participaram do projeto I Practice, em 2009, quando foi realizado o primeiro estudo duplo cego para entender se a composição tenofovir + entricitabina tinha eficácia na prevenção do contágio pelo HIV. “Virei voluntário para contribuir com o avanço da ciência, uma vez que, comprovada a efetividade da prevenção combinada, seria um grande ganho na luta contra a Aids.”
Hoje, Júlio toma a PrEP diariamente. Incorporou a medicação à sua rotina no café da manhã, para não esquecer. “Tenho uma relação sorodiscordante [em que somente um dos parceiros tem o vírus]. Utilizo o medicamento como um plus de proteção. Acredito na liberdade e na autonomia de cada indivíduo e nada impede que tanto eu quanto meu companheiro possamos nos relacionar com outras pessoas”, diz.
Para ele, a PrEP tem relação direta com a liberdade que cada pessoa tem de gerenciar riscos em sua própria vida. É ter a informação e optar pela melhor forma de se cuidar.
Busca por informação
O infectologista Vinícius Borges, da Agência Aids e do Projeto Lá em Casa, é taxativo: “Se apenas o preservativo fosse a solução, a epidemia de HIV já estaria resolvida, o que não é o caso, já que está crescendo entre os jovens”.
Para ele, é comum ver no público vulnerável ao HIV o uso do preservativo e da PrEP juntos, principalmente em encontros casuais marcados por meio de aplicativos.
Borges conta ainda que há grupos que fazem sexo (geralmente anal) sem preservativo, o chamado “bareback”, que remete ao ato de cavalgar um cavalo sem sela. “Geralmente, nesses casos, os indivíduos estão sempre se testando e fazendo acompanhamento médico. Costumo dizer que transar sem preservativo é um direito de cada um, mas indico realização de testes trimestrais, atualização de vacinas, uso de mais lubrificantes e busca por informação. É preciso focar no cuidado com a pessoa e não apenas no ato sexual”, afirma o médico, que criou no YouTube o canal Doutor Maravilha, porque percebeu que havia um despreparo dos profissionais da saúde para lidar com a soropositividade e a diversidade sexual.
O infectologista Zanella alerta que ainda há, em 2019, muito tabu e preconceito com relação ao sexo. Para ele, as Infecções Sexualmente Transmissíveis são vistas por muitos como um castigo ou algo pecaminoso. “Pensar que só o preservativo vai dar conta da proteção é um engano. Quem trabalha diretamente com sexualidade precisa fazer uma abordagem mais ampla. E as pessoas que não usam camisinha não vão se privar de sexo. Ter outras formas de prevenção do HIV é algo fantástico.”
Mudança de hábito?
Para Júlio Moreira, a chamada ditadura da camisinha persiste. “Dentro de uma perspectiva epidemiológica é preciso educar a população. O preservativo há muito tempo é tido como a principal proteção. E é assim até hoje já que a PrEP não garante a prevenção de outras ISTs. Mas a informação é poder, é o que transforma a sociedade. Estamos lidando com a dicotomia que é a relação entre o prazer e o cuidado. As coisas precisam casar para que as escolhas sejam conscientes”, afirma.
Os infectologistas entrevistados são unânimes em afirmar que o mais importante é a informação. Para Vinícius Borges, o uso da PrEP mudou os hábitos sexuais à medida em que as populações mais vulneráveis puderam viver sua sexualidade de forma mais tranquila e equilibrada, sem culpa ou com o fantasma da Aids que ainda paira sobre os LGBTs. “É possível ter mais liberdade para vivenciar seus desejos com qualidade de vida.”
No entanto, como nem todos têm direito à Profilaxia Pré-Exposição gratuita ou podem pagar por ela, a camisinha deve continuar a ter um papel fundamental no cuidado e prevenção da Aids e de outras doenças já que é distribuída de forma gratuita no SUS e pode ser comprada por um preço mais camarada.
Novos estudos em andamento
O cabotegravir, um medicamento injetável para profilaxia de longa duração contra o HIV, está sendo testado em diversos países como Estados Unidos, Peru, Argentina, África do Sul, Vietnã e Tailândia. No Brasil, os testes são feitos em São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre, cidades com alta incidência de infecção por HIV.
O público-alvo são jovens com menos de 30 anos, homens gays e mulheres transexuais. O objetivo do estudo é saber se uma injeção de cabotegravir a cada oito semanas seria tão segura e eficaz para prevenir o HIV quanto a PrEP, medicação oral oferecida em forma de comprimido que deve ser tomada diariamente.
Em outubro, será dado início a mais um estudo sobre a PrEP. Voltado a homossexuais e mulheres trans, nas cidades de São Paulo, Curitiba, Porto Alegre, Fortaleza e Ribeirão Preto, vai abranger cerca de 700 pessoas. Segundo o pesquisador Alexandre Grangeiro, da USP, o intuito é analisar o uso da PrEP sob demanda. Para isso, será preciso tomar dois comprimidos até duas horas da relação sexual, um 24 horas após a relação e outro após 48 horas. A pesquisa será liderada pelo Projeto Combina, da USP, que avalia como os métodos de prevenção ao HIV disponíveis nos serviços públicos de saúde são usados, e deve beneficiar o público que atualmente está fora da população vulnerável ao risco de HIV.
Serviço: Veja os serviços de saúde do SUS que oferecem a Profilaxia Pré-Exposição (PrEP) clicando aqui.