16/08/2017 – 11h40

_Na foto: Dra. Marinella, Márcia e Diego.

Separa os ingredientes que vai usar por ordem de prioridade para ser mais rápida e não gerar confusão: arroz arbóreo, funghi, manteiga de excelente qualidade, temperos. O alface devidamente lavado, pratos, garfos organizados. Mesa posta aguardando o preparo do “ risoto com funghi, um de meus pratos prediletos”, diz a anfitriã. Não poderia faltar um bom vinho. Surpreendentemente não era italiano. Um ótimo português. Apenas para o brinde: elegância, controle e discernimento sempre. Assim me recebeu a infectologista Marinella Della Negra, graduada em Medicina pela Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, mestrado em Medicina pelo Instituto Brasileiro de Estudos e Pesquisas de Gastroenterologia e doutorado em Ciências da Saúde pela Faculdade da Santa Casa de São Paulo, para contar a história da criação da Associação de Auxílio à Criança e Adolescente Portador de HIV (www.aacphiv.org.br), que tem passado alguns maus bocados. A situação atual do Brasil, que afeta todos nós, respinga na Associação. Dra. Marinella nasceu   em Piemonte, na Itália. Veio para o Brasil com a mãe e o pai Rinaldo, que trabalhou nas indústrias Matarazzo e administrava a fazenda para o conde.   Quando sumia, da sede da fazenda Granjas Reunidas, no norte de Minas, perto de Montes Claros, a mãe não se preocupava. Sabia que pequena Marinella, no auge de seus seis anos de idade, estava no consultório do clínico geral que atendia na região, “o Dr. Jefferson”, acompanhando seu trabalho e fazendo sempre muitas perguntas. “ Dr. Jefferson, o que é esta tal de malária, que as pessoas tremem, tremem e morrem?.” Com o médico foi pegando gosto no cuidar. Passava bastante tempo ao lado dele, observando, conversando, quem sabe já aprendendo um pouco.

A vocação e o amor pela profissão devem ter despertado ali. Também o amor pelas crianças que nasceram com o HIV via transmissão vertical (de mãe para o filho), deve ter sido o que a inspirou e impulsionou para criar a Associação. Me contou que no início dos anos 80, “as crianças nasciam e morriam igual a passarinho. Ficava muito triste. Chorei muito por isso. Um dia fui até o Jorge, farmacêutico que trabalhava no Emílio, tínhamos a monoterapia, o AZT. Perguntei a ele se não conseguiria fazer a fórmula líquida. Passou um tempo, ele fez. Ensinávamos as mães a pegar o frasco e deixar na geladeira. Não sabíamos quanto tempo iria durar o princípio ativo. O Jorge ajudou a salvar muitas crianças”, revela com alegria nos olhos e imensa satisfação.

Sobre a Associação

No site de apresentação do projeto, eles explicam que a Associação de Auxílio à Criança e Adolescente Portador de HIV foi criada a partir de 1989. Segue a história. “Em dezembro de 1985, no Instituto de Infectologia Emílio Ribas foi atendida a primeira criança exposta à infecção pelo HIV. A infecção, nessa população, começa a se fazer presente e o numero de crianças que eram trazidas para o serviço aumentava de maneira assustadora.

Os efeitos da infecção pelo HIV no paciente pediátrico eram pouco conhecidos e as publicações científicas escassas. Entretanto, apesar do enorme déficit de conhecimento técnico e científico o Instituto de Infectologia Emílio Ribas não se furtou ao atendimento dessas crianças. O surgimento dos primeiros casos incentivou profissionais ao estudo aprofundado da aids em crianças. O prognóstico da aids era sombrio, com uma perspectiva de sobrevida de poucos meses.

O número de casos de infecção pelo HIV em crianças foi crescendo exponencialmente, mas o conhecimento científico também. Com o passar do tempo surgiam novos métodos diagnósticos e mais tarde na década de 90 teve início a era da terapia antirretroviral. Os pacientes puderam se beneficiar das novas contribuições científicas e assim as crianças foram ganhando sobrevida com qualidade de vida. O Instituto de Infectologia Emílio Ribas passou a ser referência no tratamento de crianças infectadas pelo HIV, desde o surgimento do primeiro caso. Os funcionários do Instituto, habituados ao atendimento pontual das doenças infecciosas, passaram a seguir, longitudinalmente, pacientes com uma infecção crônica cercada de preconceitos e estigmas. A falta de tratamento aliado ao preconceito fazia com que as famílias tivessem dificuldades de trabalho e de sobrevivência.

No início de 1989 um grupo de médicos chefiados pela Dra. Marinella Della Negra recebeu uma doação que deveria ser revertida às crianças acompanhadas pelo serviço. Em 15 de Março de 1989, com o apoio do presidente da Associação dos Hemofílicos, surgiu a Associação de Auxílio à Criança e Portadora de HIV. Nos primeiros anos de atividade os recursos foram direcionados na ajuda a sobrevivência das famílias das crianças infectadas pelo vírus HIV que não tinham condições.

Por muitos anos a Associação distribuiu cestas básicas e auxiliou famílias a pagar contas como gás, água, luz, aluguel. Fez parcerias com pequenas empresas que arrecadavam alimentos não perecíveis e leite em pó para que fosse distribuído às famílias dos pacientes.Para disseminar conhecimento científico sobre diagnóstico, tratamento e outros temas relacionados ao HIV/aids em crianças e adolescentes e também captar recursos com a finalidade de auxiliar a população alvo, a Associação promoveu o primeiro Encontro Nacional sobre Aids Pediátrica em 1995, que vem ocorrendo a cada 2 anos.

Com o advento da terapia específica o numero de crianças que nascem infectadas diminuiu drasticamente e ao mesmo tempo que as crianças cresceram, chegando a adolescência e adultos jovens que continuam em acompanhamento no Instituto. Não há mais sentido estabelecer limites para a sobrevida. Os esforços da Associação, que tinha como foco o auxilio básico às famílias de crianças com HIV, tem hoje outro enfoque que é dar possibilidade de inserção social a esses jovens por meio da educação.

Além da função assistencial a Associação de Auxílio à Criança e Adolescente Portador de HIV continua promovendo o “Encontro Nacional sobre Aids Pediátrico” e o “Simpósio Internacional sobre Aids Pediátrico”. Estes eventos proporcionam a interação e troca de experiências entre profissionais nacionais e cientistas de grande destaque internacional no atendimento de crianças infectadas pelo HIV.”

Ainda segundo o site, “hoje, a Associação tem como meta subsidiar cursos superiores e técnicos aos jovens que vivem com HIV, atualmente entre os que já concluíram o curso e os que ainda estudam, somam 19 adolescentes beneficiados. Espera-se aumentar esse numero e consequentemente à melhora na qualidade de vida dessa população, pois a contrapartida exigida pela Associação é a adesão ao tratamento antirretroviral e sua formação educacional. O instrumento que utilizamos para o acompanhamento da adesão é a observação dos resultados das taxas de CD4 e carga viral, também acompanhamos as atividades educacionais mensalmente. Pretendemos considerar que cada jovem beneficiado com o auxilio possa, depois de formado e incluído no mercado de trabalho, contribuir de alguma maneira com os outros jovens.”

Ou seja, os jovens poderão retribuir o benefício que tiveram ao se formar em uma faculdade. “Eles foram crescendo, os desafios aparecendo. É preciso ter inserção social, perspectiva de vida. A educação abre portas e prepara para o mercado de trabalho e a vida real,” explica nossa querida Marinella presidenta e idealizadora da Associação.

“Sempre tive fé que poderia me formar”

“A gente acha que por ser portador do HIV, ainda por transmissão vertical, não vai conseguir caminhar muito na vida. A Associação mostra que não é assim não!”

“ É uma chance de futuro”

Jovens falam sobre a importância do apoio para estudar

A repórter Daiane Bomfim conversou com três, do grupo de 19 jovens que recebem ou já receberam o apoio da Associação.

Diego Vieira – Formado em enfermagem

Diego Vieira tem 21 anos e mora em Taboão da Serra, na Grande São Paulo. Por meio da Associação de Auxílio à Criança Portadora de HIV, Diego concluiu o curso de enfermagem, em julho deste ano.

Como você soube da Associação?

Quando eu terminei a escola, queria muito ingressar em um curso superior. A maioria das pessoas que terminaram o ensino médio junto comigo queriam parar por pelo menos um ano, encontrar um emprego e só depois começar a faculdade. Quando eu falei para a Dra. Marinella desse meu sonho, ela me ajudou. Por meio da Associação, ela pagava 50% da minha mensalidade e eu pagava o restante com o meu beneficio.

Qual a sua relação com a Dra. Marinella?

Eu sempre me tratei no Hospital Emílio Ribas e na infância ela era minha médica. Eu nunca perdi contato com ela ou rompi laços. Sempre que eu ia ao Emilio a encontrava ou a Márcia nos corredores ou ia vê-la.

Por que você escolheu o curso de enfermagem?

Eu sempre me interessei pela área da saúde. Acredito que devido a minha própria vida eu queria ajudar mais e vi na enfermagem uma maneira de retribuir todo cuidado que recebi.

O que você sentiu quando se formou?

Foi uma experiência muito boa ter me formado, levando em conta o HIV. Foi superar limites. Eu fiz estágio na Clínica Médica e Saúde do Adulto no Emilio Ribas e foi muito importante pra mim.

Eu sempre tive fé que poderia e tenho outros sonhos. Pretendo estudar mais e focar na saúde.

Ainda estou tirando o Coren [registro no Conselho Regional de Enfermagem]. Mas estou disposto a ajudar a Associação quando e como eles precisarem. Quero retribuir a ajuda recebida de alguma forma.

Qual a importância da Associação para você?

Sem o apoio dela eu não teria me formado. Quatro anos de enfermagem custa em média R$ 40 mil. Ela ajuda os jovens a terem objetivos concretos para o futuro. Ajuda a acreditar que é possível e conseguir.

Gugãa Thaylor – estudande de psicologia

GugãaThaylor, tem 22 anos e mora em Carapicuíba, Região Metropolitana de São Paulo. Cursa psicologia.

Como você soube da Associação de Auxílio à Criança Portadora de HIV?

Eu sempre quis fazer faculdade, era uma luta pra mim. Eu prestei vestibular na USP (Universidade de São Paulo), mas por poucos pontos não passei. Isso me deixou muito triste e então me falaram de lá.

Foi muita coincidência porque quando eu era criança eles pagavam a minha passagem de ônibus para eu poder fazer o tratamento no Emílio Ribas. Minha família não tinha condições. Aí a minha mãe conseguiu fazer minha carteirinha e não precisamos mais do dinheiro da condução. Eu perdi o contato com eles por um tempo. Agora retomamos dessa forma.

Como foi para você ganhar a bolsa?

Eu achei que seria mais difícil. Mas eu já tinha feito o ENEM, aí a dra.Marinela falou para eu ir na faculdade fazer o vestibular e levar os comprovantes para ela. Como eu já tinha a nota do Enem pude fazer direto a matricula. Encaminhei meus documentos sobre o meu tratamento do HIV com a aderência a medicação e carga viral indetectável. Fui beneficiada com o apoio para cursar a faculdade.

Eu consegui um desconto. A outra parte a Associação paga. Todo mês eu mando o boleto do curso e a Associação me entrega o cheque preenchido.

Por que você escolheu a psicologia?

Porque é um campo do saber que vai me ajudar a ajudar outras pessoas. Isso me deixa mais perto do acolhimento.

Assim que eu conseguir um emprego melhor, quero ajudar a pagar ou conseguir pagar sozinha a minha mensalidade também. Porque se eu tiver como pagar, eles podem ajudar outras pessoas que precisam.

Você espera retribuir o apoio da Associação?

Claro! Depois de formada quero muito ajudar. Essa é a única coisa que eles pedem também: que a gente tire boas notas, tenha frequência no curso, não pegue dependências e um dia possa retribuir de alguma forma. Mas eles nos deixam livre para pensar nessa retribuição. E eu pretendo ajudar.

Qual a importância da Associação para você?

Capacitar os jovens é dar incentivo para a vida. A gente acha que por ser portador do HIV, ainda por transmissão vertical, não vai conseguir muito na vida. Eles nos mostram que não precisa ser assim não! Além de nos oferecer acolhimento.

Matheus (nome fictício) – estudante de Recursos Humanos (RH)

Matheus tem 27 anos e está no último semestre do curso de Recursos Humanos.

Como você soube da Associação de Auxílio à Criança Portadora de HIV?

Eu faço tratamento no CEADIP desde os seis anos de idade. Lá eles me contaram que existe essa Associação que ajuda pessoas que se infectaram por transmissão vertical. Eles ligaram para a Dra.Marinela me recomendando e pediram que me ajudassem.

Eu já tinha começado o meu curso. Então eles pediram meus documentos, boletim e comprovante de aderência. Tudo foi aprovado e no segundo semestre eles começaram a pagar o valor integral do meu curso. Agora falta só um semestre para eu terminar e estou me esforçando muito.

Por quê RH?

Eu comecei a trabalhar com 16 anos entregando panfletos. Depois encontrei um emprego registrado como repositor. Eu não sabia o que eu queria.Nas entrevistas de emprego fui descobrindo isso.

Eu fui conseguindo e perdendo empregos, porque tenho epilepsia e passava mal nas empresas. Eles esperavam o tempo certo e me demitiam. Eu não conhecia os meus direitos e por isso escolhi RH. Eu quero ajudar as pessoas a terem conhecimento e não passarem por isso.

Qual foi sua maior dificuldade?

Eu já superei muita dificuldade nessa vida e por isso acreditei que na hora certa eu conseguiria fazer uma faculdade e trabalhar. A epilepsia era a doença que mais me atrapalhava e hoje ela esta controlada.

Mais do que o HIV?

Eu convulsionava no meio da rua, do trabalho, entre amigos e era muito difícil. Os remédios não controlavam. Já o HIV eu sempre controlei tomando a medicação corretamente e conto só para as pessoas que estão próximas a mim.

Qual a importância da Associação para você?

Sem a ajuda da Associação eu não conseguiria. Eu moro sozinho, pago aluguel e as minhas contas. A cada semestre a mensalidade aumenta e eles me apoiaram em todos eles.

Tem muita gente que não tem HIV e quer muito fazer uma faculdade e não pode. Lá eles pedem apenas a aderência ao tratamento, boas notas e frequência. É uma chance de futuro.

Eu quero muito trabalhar na minha área e retribuir toda a ajuda que recebi. Seja com trabalho voluntário ou financeiramente.

Como ajudar

A história que o mundo escreve na luta contra à aids, o preconceito e a discriminação, é feita de muitas iniciativas de pessoas que chamadas a trabalhar com o tema, se envolveram a ponto de deixar registrados capítulos dignos de aplauso e admiração. Como este, a criação da Associação, que doutora Marinella e equipe, teimam em manter em pé e ampliar a atuação. Sempre é possível ajudar um pouco.

As contribuições, qualquer valor, poderão ser feitas em nome da AACPHIV, banco Santander, agência: 4252, conta corrente: 13.003195-3 – CNPJ: 60.531.316/0001-31. Existe também uma “ vaquinha virtual”.

Depois de conhecer de perto e escrever sobre este trabalho, sensibilizada, tocada e feliz pela Associação existir, claro me disponho a ajudar. Soube pela Dra. Marinella, palmeirense como eu, que neste segundo semestre de 2017, mais duas adolescentes começarão seus estudos em faculdades. Vou colaborar com muito orgulho, admiração, aplauso, gratidão e carinho pelo trabalho de nossa querida dra. Marinella e equipe da Associação.

Também vou procurar quem possa se dispor a ajudar. A Associação, doutora Marinella, sua equipe, os jovens estudando e indo para a vida, mostram que acreditar vale à pena, que enxergar mais longe, vale à pena. Que a vida costurada com amor, solidariedade, altruísmo e semeando o crescimento do outro, sempre vale muito à pena!

 

Dica de entrevista

Associação de Auxílio à Criança e Adolescente Portador de HIV

Tel.: (11) 2645-7465

Roseli Tardelli (roseli@agenciaaids.com.br)