Não bastassem as clássicas fake news em torno das vacinas, como as de que elas causam autismo, uma nova polêmica envolvendo a vacinação contra o HPV no Acre tem jogado mais lenha nessa fogueira.

Entre 2014 e 2017, o Acre registrou uma série de reações adversas graves em crianças e adolescentes que foram vacinados contra o HPV. Os casos ficaram sem diagnóstico e, no início deste ano, o Ministério da Saúde pediu uma avaliação da equipe médica do IPq (Instituto de Psiquiatria) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP-SP.

Foram avaliados 74 casos de jovens com sintomas que iam de febre, dor de cabeça, dores nas pernas a desmaios e convulsões. Desses, foram selecionados 16 casos com sintomas mais graves, dos quais 12 foram investigados até o final de outubro.

As meninas e meninos passaram 15 dias internados no IPq, fazendo diversos tipos de exames laboratoriais e de imagem, entre eles o monitoramento da atividade cerebral com acompanhamento em vídeo.

Segundo resultados apresentados ao Ministério da Saúde, dez pacientes não têm epilepsia nem qualquer doença neurológica de natureza orgânica (provocada por lesão ou alteração elétrica no sistema nervoso central). Os outros dois casos (irmãos) foram diagnosticados com um tipo de epilepsia de origem genética que costuma se manifestar na puberdade.

De acordo com o relatório, os sintomas apresentados pelos pacientes não teriam nenhuma causa biológica ligada à vacina, mas sim seriam resultado de um surto de doença psicogênica, que teve como gatilho o medo da vacina.

“Trata-se de uma doença funcional do sistema nervoso. Está associada a estresse emocional, que desencadeia uma reação psicológica automática do sistema nervoso”, disse o psiquiatra Renato Luiz Marchetti, coordenador do projeto de neuropsiquiatria do instituto, em entrevista ao Jornal da USP.

Mas a médica Maria Emília Gadelha Serra, pós-graduada em perícias médicas na Santa Casa de São Paulo, questiona o resultado da investigação do IPq. Convidada pela comissão de saúde da Assembleia Legislativa do Acre para falar sobre o assunto, ela disse que ninguém pode dizer que os efeitos colaterais apresentados pelos jovens do Acre sejam de fundo psicológico ou psicogênico.

Segundo a médica, muitas das garotas afetadas pela vacina têm abalos musculares originados em áreas mais profundas do cérebro, razão pela qual ela acredita que os exames realizados até o momento tenham sido inadequados. Ela disse que a vacina teria contaminado as garotas com chumbo e outros metais e defende que, em primeiro lugar, deve-se tratar a contaminação pelos metais e em seguida os efeitos colaterais.

A médica, uma das principais defensoras da ozonioterapia no país, está envolvida em outra polêmica e foi processada pelo CFM (Conselho Federal de Medicina) por danos morais. Em 2017, em audiência no Senado, ela questionou a isenção do conselho para avaliar a técnica de ozonioterapia em tratamentos.

O presidente da comissão de saúde da Assembleia do Acre, deputado José Bestene (PP), diz que a opinião da médica irá se contrapor à análise dos especialistas da USP. “Corta o coração da gente, meninas que estavam em perfeito estado de saúde de repente amanheceram doentes, totalmente dependentes”, disse ele durante a sessão.

Para Marchetti, além do medo da vacina como gatilho, outros fatores podem ter contribuído para esse quadro verificado no Acre. Entre eles, famílias com alta prevalência de pais desempregados, negligência parental, contato com movimento antivacina e o fato de terem sido hostilizados por profissionais de saúde que não conseguiram encontrar as causas de seus problemas.

A literatura aponta que já houve epidemias de doença psicogênica em vários momentos da história recente. Marchetti lembra que após o ataque às torres gêmeas (em 2001) ocorreram casos de pessoas acreditavam ter adoecido por contaminação por antraz ou gás sarin. Em relação à crença de que a vacina contra o HPV cause danos, há relatos semelhantes no Japão, na Austrália e na Colômbia.

A vacinação faz parte da estratégia da OMS (Organização Mundial da Saúde) para erradicar o câncer de colo de útero, doença cuja causa mais comum é a infecção pelo vírus HPV. Por ano, o Brasil registra 16 mil casos de câncer de colo de útero e 5.000 mortes de mulheres em razão da doença. Tumores de pênis, de garganta e de ânus também estão associados ao vírus.

Segundo o Ministério da Saúde, a vacina é segura e eficaz e não há, até o momento, qualquer evidência na literatura mundial que relacione o uso a quadros graves e neurológicos.

Os casos do Acre são exemplos de que não se pode sentar em cima de problemas sensíveis de saúde pública, como as queixas sobre eventuais efeitos adversos de vacinas. O que a USP investiga agora deveria ter sido feito em 2014, quando surgiram os primeiros relatos.

Sem conseguir um diagnóstico, as famílias assumiram que os sintomas vinham de sequelas neurológicas causadas pela vacina. É compreensível. O que você pensaria se sua filha de 16 anos, até então saudável, começasse a apresentar convulsões, ou se tornasse totalmente dependente, incapaz de se locomover, após ser vacinada contra o HPV, como ocorreu com a filha de Lene Correia, a primeira mãe a procurar o Ministério Público?

Em vez de encontrar apoio, escuta e diagnóstico correto no sistema de saúde, essas famílias foram hostilizadas, desacreditadas por gestores e profissionais de saúde despreparados. Sério que é assim que o país pretende combater as fake news em saúde?

Fonte: Folha de S. Paulo