Apesar dos novos tratamentos e da diminuição dos casos de mortes por aids no mundo, o diagnóstico do vírus HIV continua carregando um estigma que afeta consideravelmente a vida social dos portadores do vírus.

Este foi o consenso entre os participantes de um debate realizado pela Folha no último dia 25, após a exibição gratuita do documentário “Carta para além dos muros”, do diretor André Canto.

O documentário traça o cenário da aids dos anos 80 até hoje a partir de relatos de médicos, ativistas e portadores do vírus HIV. O título do filme é uma homenagem ao livro “Cartas” de Caio Fernando Abreu, morto em 1996 em decorrência de complicações com o vírus da aids.

“O recorte do filme é investigar o porquê do estigma e do preconceito ainda estarem tão presentes, apesar de tantos avanços”, disse Canto.

O diretor contou que fazer uma retrospectiva da doença no Brasil, vendo principalmente a repercussão da mídia brasileira e americana, o auxiliou a compreender como se deu a construção da imagem da doença. “A gente começa a entender por que dentro de cada um está tão introjetado um medo e pânico brutais.”

Além da carga imagética da morte, Artur Kalichman, médico sanitarista do Centro de Referência e Treinamento em DST/Aids, ligado à Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, disse que o diagnóstico tem o poder de legitimar ou deslegitimar identidades e escolhas, seja do ponto de vista racial, de gênero ou orientação sexual. “É um trabalho muito grande ser sincero com seus próprios desejos, principalmente se eles não são aceitos socialmente. É como se o diagnóstico de HIV atrapalhasse todo o esforço de legitimação.”

A questão racial foi levantada por Micaela Cyrino, artista plástica que nasceu com HIV e que contou ter passado por várias dificuldades devido ao diagnóstico. “Mas nada comparado com o racismo. Eu preciso dizer que tenho HIV, então é uma coisa secundária, mas não preciso falar que sou negra.”

Micaela disse que o acesso a informações sobre a doença é limitado e a população negra é muito prejudicada por isso. “Eu acho que a não resposta governamental para esses corpos é o que aumenta o número de mortes. A Aids é um dos vieses, mas o racismo é uma agressividade generalizada, independe de classe social.”

Houve questionamentos da plateia sobre como prevenir uma doença que não tem apenas um grupo de risco específico, como foi difundido nos anos 80, e se atualmente as pessoas ainda morrem de Aids.

Segundo Kalichman, no estado de São Paulo a mortalidade por aids caiu 70%, mas ainda morrem quase 4 mil pessoas por ano. O médico disse que o tratamento não é mais o problema, mas a acessibilidade e a falta de políticas públicas para a inclusão de determinados grupos. “Hoje, com o tratamento, ninguém tem Aids. Em tese a expectativa de vida de alguém com o vírus é muito semelhante a de quem não é portador.”

O desenvolvimento mais saudável da sexualidade depende da promoção de saúde sexual e preventiva por meio do diálogo e da difusão de informação sobre novas tecnologias, como a Prep (profilaxia pré-exposição) e a PEP (profilaxia pós-exposição), segundo os debatedores.

“Temos que trabalhar outras maneiras de educação, só que antes disso precisamos tratar a sexualidade em outro lugar. A gente nunca falar de prazer”, disse Micaela.

Para Kalichman, é dando autonomia para as pessoas se apropriarem de seus desejos que a prevenção se torna mais fácil. “A partir do momento que você entende o que te dá prazer e pode falar disso livremente, você pensa em como se prevenir”, disse Canto.

Para o médico, quanto mais se interdita a instrução, mais as pessoas se tornam vulneráveis. “A decisão está na micropolítica de cada um, mas precisamos garantir o acesso a conhecimento e tecnologia.”