“Eu tinha medo de ter câncer de útero ou câncer de mama, por ser uma consequência dessa vida de pecado, por ser lésbica”, diz X.*, de 32 anos, sobre a época em que vivia o conflito entre sua fé e sua sexualidade. Ela preferiu não se identificar ao contar a experiência com a terapia de reversão sexual, mais conhecida como cura gay.
— Não quero expor meus pais, estamos em um momento delicado — justifica.
Esse é um dos dramas que LGBTs+ enfrentam quando se assumem para a família. Em muitos casos, a possibilidade de cura é considerada e procurada em consultórios e templos religiosos. A prática pela via psicológica foi liberada no ano passado, por decisão do juiz federal Waldemar Claudio de Carvalho, da 14ª Vara Federal no Distrito Federal, mas foi cassada depois de uma liminar concedida pelo Supremo Tribunal Federal, publicada na quarta-feira, 24 de abril. A ministra Carmen Lúcia, responsável pelo caso, defendeu que é papel do STF julgar esse tipo de alteração.
A decisão foi recebida com festa por ativistas dos direitos dos LGBTs+ e pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP), autor da ação que derrubou a liberação do tratamento no Brasil. Em nota, a instituição afirmou que “continuam válidas todas as disposições da Resolução CFP nº 01/99 (que determina que não cabe a profissionais da Psicologia o oferecimento de qualquer tipo de prática de reversão sexual), reafirmando que a Psicologia brasileira não será instrumento de promoção do sofrimento, do preconceito, da intolerância e da exclusão”.
Por outro lado, o debate sobre o preconceito continua distante do núcleo familiar que ainda empurra os seus para encontros que prometem reverter a identidade dos LGBTs+. X. participou de uma tentativa de cura incentivada pelos pais, após eles descobrirem sua relação homoafetiva. Vivendo no Paraná, ela visitava sua cidade natal, no interior do Rio Grande do Sul, e precisou visitar toda semana a mulher do pastor da igreja que a família frequentava. Por três meses, ela perdeu o contato com amigos e com a namorada.
— A mulher do pastor me deu folhas em que estavam listadas coisas sobre o meu comportamento e os meus relacionamentos. Eu escrevia que estava me relacionando com uma mulher, dizia coisas íntimas e sexuais. Depois de preencher, eu lia em voz alta para renunciar a tudo, orava a Deus, pedindo para que tirasse aquilo de mim e repreendesse a ação do inimigo (demônios, segundo a crença da congregação) na minha vida — diz X., que não conseguia fugir das sessões. — Eu me sentia ridícula, suja, culpada e a pior pessoa do mundo. Se você não se emociona, parece que não está abrindo o coração para Deus. Era uma espécie de confissão, mas muito induzida. Eu saía de lá e me sentia miserável. Não estava com a pessoa que eu amava, não me reconhecia mais e não sabia o que fazer com a minha vida.
Depois de brigar com os pais, X. retomou a vida ao lado da namorada e ficou um ano sem visitá-los. Ao mesmo tempo em que convivia com o fato de ser lésbica, o conflito com a sua crença a impedia de viver uma vida saudável. Tinha insônias, crises de ansiedade e medos que a rondavam noite e dia.
— Eu não conseguia assumir para a minha família que estava com a minha namorada. Não conseguia admitir que a cura não funcionou — afirma ela, que retomou o contato com a família em uma festa de Natal.
Os laços familiares voltaram a se estreitar, mas sua sexualidade não era comentada. Certos de que a filha poderia se voltar para a religiosidade, os pais de X. a levaram a um ritual feito pela mesma igreja, mas agora na casa do pastor. Dez pessoas consideradas influentes e “mais próximas de Deus” se posicionavam em um círculo, com a pessoa considerada pecadora entre elas. Era o começo da segunda fase da terapia:
— Parecia um paredão, a gente ficava no meio sendo bombardeada. Você sentava naquela sala e era forçada a falar todos os seus pecados para limpar o coração. Era muito opressor. Você chora de vergonha, de raiva e de medo. Eles acessam um canal de dor. Lá você via mulheres e homens chorando. Adolescentes tinham que renunciar à masturbação, principalmente as meninas. Homens casados confessavam traições. A igreja toda ficava sabendo o que acontecia nesses encontros. Todo mundo queria saber quais eram os pecados que a pessoa cometeu — explica X.
Busca por uma ‘salvação’
Encontros entre membros da igreja e a busca por uma “salvação” não é uma novidade para Sergio Viula, 49 anos, ex-pastor, professor e ativista, que não só frequentava os encontros como os articulava. Ele e outros pastores fundaram, no Rio, na década de 1990, o grupo Movimento pela Sexualidade Saudável, conhecido pela sigla Moses, que tinha como objetivo reunir LGBTs+, em sua maioria homens gays, que esperavam mudar de vida.
— Nós tínhamos estratégias muito interessantes para alcançar os homossexuais. Fazíamos panfletagem na Parada Gay, íamos para a porta da Le Boy (boate que fechou as portas em 2016), em Copacabana. Dávamos folhetos para as pessoas e conversávamos. Felizmente, muitos não davam bola, mas outros frequentaram o Moses — diz Sergio, que foi casado com uma mulher por 14 anos, com quem tem dois filhos. Ele deixou a vida de pastor e pediu o divórcio depois de uma série de situações vividas no Moses. Mais tarde, vieram as reflexões sobre sua sexualidade e a saúde mental das pessoas que participavam dos encontros.
— Preciso deixar isso bem claro: nesses meus 14 anos de casado, 18 anos na igreja, nunca vi um homossexual, uma lésbica ou um trans ser curado. Um dos homens do Moses, casado com uma mulher, morreu e havia três “viúvas” no enterro: a esposa dele e dois homens com quem ele ficou — relembra Sergio, que viu de perto e sentiu na pele o desgate emocional de quem reprime os seus desejos.
— Eu via muita gente deprimida e pensava: “De que maneira o Moses colaborou para diminuir esse sofrimento?” Em nada! Por mais que demonstrasse compaixão e amor, é sempre um amor condicional. Você é bem-vindo, mas tem que deixar de ser você mesmo. Isso não é amor, não vale a pena pagar por isso. Nenhum centavo.
Psicólogos alertam para os danos na psique humana causados por essas terapias. Pedro Paulo Bicalho, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e conselheiro do Conselho Federal de Psicologia (CFP), relembra que a Organização Mundial da Saúde (OMS) retirou a homossexualidade da lista internacional de doenças, em 1990. O CFP tem uma resolução inspirada nessa decisão, que afirma que “psicólogos não colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades.”
Pais não lidam bem com sexualidade dos filhos
Apesar da atuação do CFP, as terapias de cura gay não são muito denunciadas porque a maioria dos casos acontecem fora dos consultórios. O papel da família na busca pela aceitação de um LGBT+ é considerado vital para a saúde mental dos integrantes dessa comunidade, mas o cenário ainda é outro: pais não conseguem lidar com a sexualidade dos filhos.
— Quando uma família acredita na possiblidade de reverter quem a pessoa é, talvez, o melhor caminho não seja explicar que essas terapias são perigosas, mas dar um passo atrás. Explicar que ser gay é normal, que ser trans é normal — afirma Ana Andrade, militante na ong All Out, que promove campanhas a favor da causa LGBT+ ao redor do mundo.
Outras organizações não governamentais também atuam para favorecer o processo de autoaceitação. Uma delas é a Mães pela Diversidade, que mira em pais e mães de LGBTs+.
— Cada um tem o seu tempo e suas crenças. E também há a questão do que os outros vão dizer. Não são apenas os pais e mães que precisam aceitar. Os tios, os avós, o que eles vão pensar? — diz Denise Kolblinger, psicóloga clínica e mãe de três filhos (uma hétero, um gay e uma lésbica), que organiza grupos de apoio para mães de filhos LGBT+.
A análise foi utilizada de forma saudável por X. Após se envolver na militância feminista e LGBT+, ela começou a reconsiderar a sua relação com a sua fé, sua sexualidade e seus relacionamentos.
— Comecei a análise porque precisava de alguém que não fosse da igreja nem parente para tratar meus traumas e culpas. Eu consegui entender que posso ter a minha crença, mas não do jeito que a colocaram para mim. Em paralelo, eu achei referências de pessoas que também passaram por isso e que me fizeram ver que não sou um caso isolado.
Já em relação aos seus pais, X., aos 32 anos, voltou a trazer o assunto a tona:
— A gente voltou a falar sobre isso esse ano. Eu cheguei para eles e assumi: “Não vou mais carregar esse peso, não vou mais viver em negação, porque vocês não conseguem lidar com uma coisa que não diz respeito a vocês.
Sérgio Viula só se assumiu para os pais quando já era adulto. Ficaram quatro anos afastados, mas, hoje, eles aceitam a sua sexualidade. Sérgio reforça que os LGBTs precisam fazer uma rede de contatos para evitar o desamparo:
— No meu tempo, eu não conhecia ninguém gay na minha vizinhança que fosse realmente assumido. Só existiam dois homens bem mais velhos, e eu era orientado a não chegar perto deles.
Sobre a cura gay e o debate dos últimos anos, Sergio retorna ao momento em que começou a olhar o seu trabalho pastoral, de influenciador de reversões sexuais, sob uma outra ótica:
— É a mesma coisa que você inventar um problema para vender uma solução. A pessoa que acredita que tem um problema continua sem a solução porque nenhum dos dois existe. Aqui está a questão: não há nada de errado com a homossexualidade, e qualquer tentativa de mudar isso faz mal às pessoas.
*Nome modificado para preservar a identidade da entrevistada
Fonte: O Globo