Se uma máquina do tempo levasse um infectologista ao início da epidemia de aids com uma PrEP na mão, talvez ninguém acreditasse nele. PrEP é a sigla em inglês para Profilaxia Pré-Exposição, ou seja, uma medida preventiva para antes de se ter contato com o vírus. Esse remedinho diário, testado desde 2010 e disponível para uso a partir de 2012, garante em quase 100% dos casos que um paciente exposto ao vírus não vai contraí-lo — desde que esteja fazendo o uso corretamente, é claro.

“É a maior revolução na prevenção do HIV em quase 40 anos de epidemia”, afirma o pesquisador Daniel Barros, do Núcleo de Pesquisa em Direitos Humanos e Saúde LGBT+. De janeiro a dezembro de 2018, 8.100 brasileiros estavam utilizando as pílulas.

A maioria dos usuários de PrEP é de homens que fazem sexo com outros homens (HSH): 82%. Para esse grupo, o novo comportamento de recorrer ao tratamento se reflete em maior tranquilidade na cama. “Eu me sinto mais seguro. Embora a PrEP seja recomendada como proteção combinada, e não como algo exclusivo, acaba sim diminuindo as incertezas”, relata o engenheiro André*, de 27 anos, que toma a medicação desde outubro de 2018.

Assim que se mudou para Nova York, em 2017, o curitibano Zen Junior, de 33 anos, leu sobre o crescimento dos casos de HIV na cidade. Por isso, decidiu se prevenir por meio da PrEP. “Eu ficava angustiado mesmo sem ter tido nenhum comportamento de risco. Hoje construí uma relação mental mais saudável com o sexo pois conto com outro método de proteção”, diz.

Médico sanitarista e pesquisador do tema há 30 anos, Artur Kalichman coordena o Programa Estadual de IST/Aids em São Paulo e avalia como positivos os resultados do uso da pré-exposição. “Vários países, como a Austrália, estão tendo grandes avanços de redução do HIV onde a PrEP está sendo implantada de forma mais efetiva”, relata.

Hoje, o SUS orienta o sistema de prevenção combinada do HIV, que soma técnicas diversas para alcançar resultados mais assertivos. Entre elas, estão a testagem regular, o uso de preservativos, a prevenção de transmissão vertical (de mãe para filho) e a PrEP.

O comprimido é composto por 2 medicamentos que também integram antirretrovirais, receitados a quem se trata do HIV. A emtricitabina tem poucos efeitos colaterais, mas o tenofovir pode se depositar nos rins e ossos com o tempo.

“Não é para todo mundo nem é para a vida toda. Cabe avaliar se serve para você naquele momento”, observa Kalichman. Segundo ele, além dos HSHs, há 3 grupos que buscam o tratamento com mais frequência: população trans e travesti, profissionais do sexo e casais sorodiferentes – quando um tem o vírus e o outro não. Do total de usuários brasileiros, 32% são de casais sorodiscordantes.

Independentemente de orientação sexual, algumas pessoas podem viver fases com maior variedade de parceiros, quando se recomenda a PrEP. Já em momentos de exclusividade ou até reclusão da vida sexual, é possível interromper o tratamento.

‘Efeito Colateral’ da PrEP

A oferta da PrEP no SUS levantou dúvidas se as pessoas relaxariam ou abandonariam o uso da camisinha. O temor identificado em estudo da Faculdade de Medicina da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) coincide com tendência de aumento de outras infecções sexualmente transmissíveis no mundo, como sífilis, gonorreia e clamídia.

O levantamento mais recente do Ministério da Saúde mostrou que, no Brasil, a detecção de sífilis cresceu de 44,1 casos para cada 100 mil habitantes em 2016 para 58,1 casos em 2017. As mulheres jovens e negras são as mais afetadas pela doença.

Para o sanitarista Artur Kalichman, no entanto, a médio prazo, a PrEP também deve contribuir com a redução dessas infecções. “A pessoa que toma PrEP é obrigada, por protocolo, a comparecer de 3 em 3 meses para colher exames e se testar para HIV e outras infecções. Com o diagnóstico e tratamento, a tendência de aumento pode ser revertida e até reduzida”, explica.

Entretanto, de janeiro a outubro de 2018, 19% das pessoas que estavam utilizando as pílulas suspenderam o uso — durante acompanhamento ou antes do retorno de 30 dias.

 

Expansão da PrEP no Brasil

Diferentemente do Brasil, nos Estados Unidos o remédio pode custar até US$ 2 mil por mês para quem não possui plano de saúde nem é inscrito em algum programa de distribuição em centros LGBT+.

“A implementação da PrEP com oferta gratuita pelo SUS trata-se de uma iniciativa de alto impacto que coloca o Estado brasileiro na vanguarda da prevenção em uma discussão mundial”, destaca Barros. Ele diz, porém, temer recuos no governo Bolsonaro.

Assim como ele, outros ativistas e entidades de combate à aids temem que, sob Bolsonaro, campanhas de conscientização e prevenção de HIV sejam afetadas.

Ao menos a divulgação e o esclarecimento sobre PrEP não devem ser prejudicados. É o que sinalizou há pouco mais de 1 mês o epidemiologista Gerson Pereira, diretor do Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das ISTs/Aids, do Ministério da Saúde.

Em abril, ele esteve reunido em Brasília com profissionais de saúde de todo o País e falou sobre a expansão da oferta de PrEP no Brasil. O governo indica que vai dobrar o número de atendidos: dos 8 mil atuais para mais de 16 mil pessoas.

Barros alerta que só aumentar o número de tratamentos no SUS “não vai funcionar”. “Esta é uma discussão que deve envolver diferentes segmentos, como escola, família e ambiente de trabalho.”

Assim como André* e Zen, que são homens cisgêneros, brancos e escolarizados, 75% dos usuários de PrEP no Brasil têm mais de 12 anos de estudo.

 

5 coisas que você precisa saber sobre a PrEP

1. É obrigatório continuar se testando regularmente, mesmo com o uso contínuo. “Se o paciente tiver HIV, muito provavelmente vai criar resistência, e já tem que partir para outro tratamento medicamentoso porque estes são base para o tratamento do HIV”, afirma Dr. Artur Kalichman.

2. Uma vez iniciado o tratamento, é preciso levá-lo a sério. “A eficácia da PrEP está diretamente ligada à boa adesão ao medicamento, ou seja, tomar o comprimido todos os dias”, comenta Daniel Barros.

3. Também é possível realizar o tratamento por meios privados. André* começou a tomar a PrEP assistido por uma médica particular. Gastava aproximadamente R$ 300 por mês e obedecia aos mesmos protocolos do SUS para receber a receita e solicitá-la a importadoras.

4.Ao falar em PrEP é comum encontrar o nome do Truvada. Esse é o título comercial do medicamento elaborado pelo laboratório Gilead.

5. 43% das pessoas relatam ter efeito colateral. Na maioria dos casos, os efeitos relatados são: náuseas, flatulência, diarreia e dor no estômago. “Quando comecei, eu esperava ter algum efeito colateral, pelo menos na primeira ou segunda semana, mas não tive nenhum”, conta Zen. Apesar de alguns pacientes não relatarem qualquer efeito, um dos testes frequentes que o paciente é submetido serve para medir efeitos colaterais de longo prazo no corpo.

*André é um nome fictício. O entrevistado preferiu não informar seu nome real.

Fonte: HuffPost