Cida Clementina* gosta de cantar, dançar e “ir a el campo”, onde nasceu e foi criada. Tem quarenta anos. Me contou que come de tudo um pouco, porque trata de estar bem “para enfrentar o que vem pela frente na vida. ” Muito simpática, simples, direta e segura de si. Daquele tipo de gente que dá vontade de ficar ao lado, ouvindo histórias e jogando conversa fora.

Mãe de três filhos, contou que o HIV chegou em sua vida quando tinha 21, ‪há 19 anos. O marido, José Calixto, com quem se casou aos 17 anos, morreu um ano depois, quando ambos souberam de seus diagnósticos. “Estava grávida de meu segundo filho. Ele nasceu, adoeceu, fizemos o teste. Recebemos o resultado. Hoje, eu digo que sobrevivi porque tive muito apoio da minha e da  família dele”.  A “Avuela Izidra”, além de parteira era como se fosse uma médica naturalista. “Quando soube, passou a cuidar muito de minha alimentação e ajudou com seus conhecimentos. Me dava medicamentos naturais, ervas que seguraram minha imunidade”.

Tudo aconteceu muito rápido e cedo na vida de Cida. O ativismo chegou aos 22 anos. “Foi a necessidade de nos organizarmos que me trouxe para este lado. Era a única forma de conseguirmos medicamentos”. Sim, ainda bem, conseguiram depois de entrar com um processo na Corte de Direitos Humanos  Internacional em Washington.

“Criamos a Associação Nicaraguense de Pessoas Vivendo com HIV. Ao todo, éramos em 16 pessoas. Quando, enfim, a medicação chegou, 8 já tinham morrido.” Quatro anos de discussão jurídica. Muito tempo para qualquer doença. Imaginem para quem, na época tinha contraído o HIV? O governo da Nicarágua, então presidido por Arnoldo Alemán, do Partido Liberal Constitucionalista, herdeiro do antigo Partido Liberal, que por várias décadas governou a Nicarágua recorreu por anos seguidos a Corte de Direitos Humanos Internacional para impedir que os antirretrovirais chegassem aquele país.

“Quando os medicamentos chegaram, combinamos que quem estivesse em melhores condições de saúde, cederia sua cota para outros que já estavam mais debilitados. Eu estava bem. Dei meu lugar na fila para um outro ativista amigo que estava adoecendo”.

Cida voltou para a fila e começou a tomar medicação, no final de 2004, quando engravidou novamente. Sua filha negativou por conta de todos os cuidados que teve durante a gestação e parto. O filho do meio não alcançou esta possibilidade. “Está bem, toma os remédios com regularidade”.

Na Nicarágua ameaças de morte, repressão, desrespeito aos direitos humanos: filhos mudam para Costa Rica

Desde julho de 2016, o presidente Daniel Ortega conseguiu, através do Tribunal Eleitoral, tirar todos os cargos de deputados que haviam sido eleitos pela oposição. Ortega, com uma manobra política e por controlar o Tribunal, impôs um sistema de regime de partido único. A mídia internacional informa que ele colocou seus filhos em cargos públicos e na administração de empresas que enriqueceram sua família. Além disso, a esposa Rosário Murillo, controla toda a administração pública e governa junto com o marido.

Estudantes e movimentos sociais começaram a protestar. Cida denunciou que todos os integrantes de organizações que trabalham com a defesa de direitos humanos e que protestem ou discordem das diretrizes impostas pelo presidente Daniel Ortega tem sido perseguidos e ameaçados de morte. Segundo suas declarações, nos últimos três meses a prática vem se intensificando no país que registra 314 jovens assassinados. Ela mesma recebeu uma contundente ameaça pelo Facebook. Um dia, entrou em sua página e se assustou com a mensagem: “Esta perra y todas ustedes morriran, muerte sangre plomo bala”. Em claro e assustador português, “ Esta cadela e todos vocês vão morrer, morte, chumbo, bala de sangue”.

Além do depoimento ouvido pela Agência Aids, Cida contou sua história e pediu ajuda em reunião pública realizada com outros integrantes ativistas de América Latina e Caribe, com a presença do representante do ONUSIDA durante  a Conferência de Aids, em Amsterdam. Ela, e grande parte dos presentes se emocionaram com suas informações e denúncias sobre a realidade é às violações que acontecem por lá. Para proteger seus filhos, conseguiu os documentos necessários e mandou os dois jovens, que estavam na universidade, para a Costa Rica, país vizinho. “Eles estão em segurança na casa de parentes”, disse aliviada. Já está organizando os documentos da filha mais nova para que ela possa de juntar aos irmãos.

A ameaça postada  em sua página pessoal do Facebook foi escrita  em  cima de uma foto onde a ativista aparece junto com a filha adolescente. O mesmo relato foi registrado a organismos internacionais que representam os Direitos Humanos na Nicarágua. Ela explica que a União Europeia e os Estados Unidos iniciaram sanções em protesto contra as violações e assassinatos que amedrontam e oprimem os nicaraguenses.

ONUSIDA se pronuncia

“Eu perguntei a ela quais as necessidades que tem. Fui informado que ela já se dirigiu e fez a denúncia para autoridades locais. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA está no país e o alto Comissionado de Direitos Humanos da ONU também segue por lá. Ao mesmo tempo oferecemos a ela que, em qualquer momento, solicite nossa ajuda. Podemos oferecer o apoio que seja necessário.”

“Pelo que me disse, ela está ameaçada de morte. É uma situação de muito risco e agressividade”, insisti. “Foi uma ameaça anônima feita via redes sociais. Neste momento, na Nicarágua, tem acontecido muitas mortes pelas ruas feitas pelos paramilitares. Qualquer pessoa que se declare contra o governo atual está sendo ameaçada. Não acredito que a intimidação aconteceu porque ela vive com HIV, mas pelo contexto sócio-político em que  o país está inserido”, explicou César Nuñez, diretor Regional da ONUSIDA para América Latina e Caribe .

Com todos os desafios e sofrimentos que a vida lhe trouxe, Cida, que é integrante da ICW da América Latina (Comunidade Internacional de Mulheres com HIV) e  tem parentes na Costa Rica, poderia se organizar e sair da Nicarágua por um tempo. Até que a poeira baixasse, o país voltasse a normalidade democrática e os assassinatos e perseguições não fizessem mais parte do cotidiano. Nem pensa nisso. ” Não vou agarrar minhas “maletas” e ir embora. Tenho muitos amigos com HIV que não poderiam fazer o mesmo. São pessoas pelas quais tenho responsabilidade. Elas não têm como sair. Confiam e têm esperança em mim. Somos um movimento único. Temos que nos apoiar: é o caminho, a saída para todos nós”.

Quando a gente participa de uma reunião internacional como a que acontece em Amsterdã, volta para casa levando na mais “maletas” de esperança e sempre desafios.

Ainda estou me perguntando como e o que posso fazer, além de levar esta história para você conhecer, para que Cida Clementino não se transforme em um símbolo como se transformou Marielle Franco no Brasil.

Temos já muitos exemplos de mulheres que dedicaram sua vida e história para educar e contribuir para um mundo melhor. Gostaria de poder escrever e contar mais exemplos e histórias com finais felizes que resultassem em transformação, amor, felicidade, cidadania e liberdade. Afinal, como ensinou Cida com seu exemplo, firmeza, simplicidade, sabedoria e dignidade: “Somos um movimento único. Temos que nos apoiar: é o caminho, a saída para todos nós.”

Frases de Cida:

“Trato de estar sempre bem para enfrentar o que a vida trouxer por aí”

“Sonho sim com a cura da aids”

“Quero uma Nicarágua livre de violência e repressão”

“Não vou agarrar minha maleta (mala) e ir embora. As pessoas confiam em mim.”

Roseli Tardelli, de Amsterdã (roseli@agenciaaids.com.br)

A Agência de Notícias da Aids cobre a Conferência em Amsterdã com o apoio do Departamento de IST, Aids e Hepatites Virais, do Ministério da Saúde, do Condomínio Conjunto Nacional e da Associação Paulista Viva.