Após as justificativas dadas pelo Ministério da Saúde para a instauração da nova estrutura do Departamento responsável pela resposta à epidemia do HIV/aids – dentre as medidas, está a renomeação do antigo Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das ISTs do HIV/Aids e das Hepatites Virais para Departamento de Doenças de Condições Crônicas e IST (DDCCI) – a ABIA vem a público reforçar o erro grave desta ação e demonstrar os equívocos cometidos pelo Decreto 9795 de 17 de maio de 2019.

A nova estrutura não irá promover maior integração entre as áreas agregadas no novo Departamento. As patologias ali reunidas (verminoses ao lado de infecções virais – como HIV e Hepatites – e infecções bacterianas – como gonorreia, tuberculose e hanseníase) possuem diferenças significativas no que se refere a formas de transmissão, escalas de impacto, segmentos populacionais diretamente afetados, dinâmicas sociais, indicadores e fatores epidemiológicos, dentre outros agentes. As condicionantes sociais do HIV e da aids e de verminoses, por exemplo, são completamente distintas. A epidemia do HIV/aids afeta em especial jovens gays e pessoas trans e a resposta exige uma abordagem focada em combate ao estigma. Já as verminoses afetam em especial as crianças e a resposta depende de uma abordagem focada em saneamento básico.

Portanto, na ausência de questões em comum entre as patologias, há o risco de fragmentação do novo Departamento. Além da possível disputa por recursos, a junção de patologias tão díspares poderá comprometer a produção de indicadores epidemiológicos e a eficiência da política de saúde pública. O novo Departamento pode se tornar uma torre de babel na qual não haverá diálogo entre as distintas áreas que o compõem. Isso não vai promover integração, como afirma o Ministério da Saúde e sim, diluir recursos e desperdiçar a expertise acumulada em cada uma dessas áreas. A fragmentação poderá resultar em precarização de respostas a doenças que já são precarizadas.

Cabe ainda destacar o equívoco da nova gestão ao desaparecer com a assessoria de comunicação do antigo Departamento, responsável até então pelo desenvolvimento autônomo de estratégias de comunicação e campanhas, especialmente de prevenção. Estas campanhas constituíam um dos pilares mais importantes na resposta brasileira à epidemia do HIV/aids e são igualmente fundamentais para outras ISTs. Como ficam as estratégias de prevenção que asseguram a redução das infecções pelo HIV/aids e outras ISTs?

O Ministério da Saúde também divulgou que “o orçamento da área passou de R$ 1,7 bilhão em 2018 para R$ 2,2 bilhões em 2019”. Para a ABIA, este dado é impreciso uma vez que esse incremento contábil ao orçamento do Departamento ocorreu por causa da incorporação da verba destinada para a compra de medicamentos para Hepatite C na passagem de 2018 para 2019. Ano passado, o orçamento do Departamento era de R$ 1,7 bilhões. Com o acréscimo de R$ 300 milhões dos medicamentos para Hepatite C, chegou a R$ 2 bilhões. Sendo o orçamento de 2019 de R$ 2,2 bilhões, observamos que o aumento real foi de R$ 200 milhões [1] e não de R$ 500 milhões, como afirmou o Ministério.

Ressaltamos ainda que o futuro da compra de medicamentos é motivo de grande preocupação, uma vez que o decreto transfere ao Departamento de Assistência Farmacêutica (DAF) a responsabilidade pela aquisição e distribuição de todos insumos estratégicos (artigo 31), tais como medicamentos. Ao DDCCI caberá apenas “definir a programação de insumos críticos” (artigo 38). Nesse sentido, o decreto potencialmente debilita estruturas e funções relacionadas às atividades de licitação, compra, armazenamento e distribuição de medicamentos antirretrovirais. Isso significa que a vasta expertise desenvolvida nesses terrenos pelos quadros técnicos do antigo Departamento será descartada, ainda que tenha sido essencial para, ao longo dos anos, assegurar as reduções importantes nos preços dos medicamentos. Além disso, foi essencial na gestão da distribuição para os pacientes, na tomada de posicionamentos políticos sobre abusos cometidos por empresas farmacêuticas, dentre outros. Sob gestão do DAF, não há garantias de que haverá a devida flexibilidade para compras emergenciais ou capacidade de articulação política para negociações mais efetivas de preço ou mesmo uma dinâmica de armazenagem e distribuição que esteja devidamente articulada com o monitoramento e o controle epidemiológico.

Também é preciso situar os efeitos potencialmente deletérios do Decreto 9795 em relação ao cenário mais amplo do orçamento da saúde. Por efeito da Emenda Constitucional 95, que impõe o congelamento do piso de aplicação em saúde, o setor já perde R$ 8,5 bilhões em 2019. Além disso, a Portaria MS/GM 3992/2017 impôs o fim dos blocos de financiamento do SUS, prejudicando a manutenção e ampliação de ações de prevenção e assistência à epidemia do HIV/aids nos níveis estaduais e municipais. O Ministério da Saúde recém-estruturado conta ainda com prazos curtos para apresentar sua proposta orçamentária para 2020. Tendo em vista a nova estrutura proposta para o Departamento, não está claro como será feita a alocação de recursos para a resposta ao HIV/aids, especialmente para a compra de medicamentos, que é o componente mais substantivo dessa peça orçamentária.

Também lamentamos que o Ministério da Saúde não tenha feito nenhuma referência pública em relação às críticas apresentadas pela sociedade civil sobre falta de transparência e ruptura democrática. As alterações anunciadas pelo decreto emanam de uma decisão unilateral dos níveis superiores do Ministério da Saúde que ignoram, por completo, as instâncias de participação e consulta que compõem a resposta institucional à epidemia e nas quais participam os níveis descentralizados de gestão e a sociedade civil. Esse procedimento decisório informa que não se trata de um mero “ajuste técnico”, mas de uma medida claramente antidemocrática.

Por fim, a ABIA ressalta que é flagrante que essa alteração semântica no nome do Departamento tem como objetivo ocultar o HIV/aids, terminologia que desde os anos 1980 é no Brasil e no mundo sinônimo de participação cidadã, luta contra as desigualdades, proteção de direitos humanos e respeito pela diversidade. Lembramos que nos anos 1980, em resposta a eclosão da epidemia, ativistas no mundo todo adotaram o slogan “silêncio = morte” para dar visibilidade ao HIV/aids na pauta das políticas públicas nacionais e internacionais. Ao invisibilizar o HIV/aids, o atual governo brasileiro restaura a política de silêncio e morte, pois essa mudança semântica permite que o Estado se “desresponsabilize”, gradualmente, de respostas efetivas aos efeitos de uma epidemia que afeta quase 1 milhão de brasileiros e causa cerca de 12 mil mortes por ano.

As incertezas resultantes da reestruturação proposta no Decreto 9795 – e em especial pela falta de transparência na condução deste processo – geram angústias e preocupações em milhares de brasileiros e brasileiras impactados/as direta e indiretamente pela epidemia do HIV/aids. Questionamos, a seguir, o Ministério da Saúde sobre o que será feito para responder a essas pessoas.

Além disso, apresentamos a seguir um conjunto de pontos que merecem esclarecimentos:

Num contexto em que diversos estados não investem o suficiente na resposta à aids e no qual se sinaliza para o fim dos blocos de financiamento do SUS, qual o impacto que a redução da importância do HIV/aids no nível federal terá no nível local?

Qual é a mensagem que esse desmonte do Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das IST, do HIV/Aids e das Hepatites Virais, que se tornou uma referência internacional, envia para o mundo, ou seja para a agenda global de resposta ao HIV/aids?

Em relação ao DDCCI, qual será o nível de autonomia de cada uma das coordenações e programas que cobrem distintas áreas e estratégias de saúde pública?

Como será a distribuição dos recursos financeiros dentro do DDCCI?

Em que estágio se encontra a preparação da proposta orçamentária para 2020 e quais as mudanças, decorrentes da reestruturação, nos valores que estão sendo solicitados para cada departamento, coordenação e programa? E em particular em relação a área do HIV/aids?

Quais serão os mecanismos para o monitoramento e avaliação da execução dos recursos destinados a cada patologia?

Qual o impacto que esta reestruturação terá no cumprimento de metas já assumidas pelo país como a eliminação da Hepatite C até 2030 (conforme plano nacional aprovado em 2017) e a eliminação da aids até 2030 (conforme declaração da ONU firmada pelo Brasil em 2016)?

[1]Nesse aumento, 100 milhões se referem ao orçamento da compra de ARVs que passou de 1,2 bilhões em 2018 (dado obtido via LAI, pedido 25820002168201945) para 1,3 bilhões em 2019, (dado extraído de: https://www.camara.leg.br/internet/comissao/index/mista/orca/orcamento/OR2019/proposta/4_VolumeIV-TomoI.pdf)