Nas últimas décadas, criaram-se diferentes datas e marcos em alusão às distintas lutas por direitos e pela dignidade humana, o Dia Internacional da Pessoa com deficiência, o Fim da Violência Contra Mulher, o Dia Mundial de Luta Contra a Aids, e o Dia Internacional de Direitos Humanos são alguns deles. Mesmo assim, pelas próprias pessoas com deficiência, há uma resistência em abordar a transversalidade dessas lutas, o que, inclusive, nos submete a diversas vulnerabilidades.

Ainda somos pautados pela perspectiva biomédica, que resume nossa existência a biologização, como também temos dificuldade de nos pautarmos pelo modelo social da deficiência, que compreende que essa vivência não é causada pela diversidade de nossos corpos, mas sim por uma estrutura social que nos compreende como incompletos. Uma evidencia da patologização de nossa identidade é perceptível pela ausência do aprofundamento na temática da deficiência pelas Ciências Sociais, permanecendo a abordagem estrita às áreas de Psicologia, Educação e Medicina.

O entendimento da deficiência pela perspectiva de direitos humanos é a visão atual de nossa legislação. De acordo com a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (2015), “considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas”.

Não negamos os fatores biológicos de patologias que comprometem funcionalidades, mas chamamos a atenção de que as barreiras para o exercício de nossa cidadania se encontram no capacitismo, que é a estrutura social que nos percebe como não iguais e, até mesmo, incapazes de gerir nossas próprias vidas.

Além disso, é importante frisar que a deficiência está associada a altas taxas de analfabetismo, alimentação inadequada, falta de acesso à água potável, grau de imunidade baixo, doenças (e tratamentos inadequados), condições de trabalho perigosas/insalubres e violências. Ou seja, a deficiência está sendo uma importante marca social da privação de direitos fundamentais.

De acordo com o Censo Demográfico 2010, 45.606.048 brasileiros, 23,9% da população total, têm algum tipo de deficiência. As mulheres com deficiência representam 26,5% do número total de brasileiras.

Diante a realidade da violência no Brasil, onde uma mulher é assassinada a cada duas horas e 164 estupros são notificados por dia, precisamos reconhecer que a probabilidade dessas violências acontecerem com mulheres com deficiência é alta, já que a cada 4 mulheres, ao menos 1 tem deficiência.

Segundo relatório do Banco Mundial/Faculdade de Yale sobre HIV/Aids e Deficiência (2006), estima-se que mulheres com deficiência correm 3 vezes mais risco de serem estupradas do que mulheres sem deficiência. Esse dado é ainda mais preocupante entre as jovens com deficiência intelectual, onde se estima que 70% delas podem ser violentadas.

A vitimização de pessoas que, além de sofrer a violência de gênero, ainda sofrem vulnerabilidades por deficiência foi abordada também pelo Atlas da Violência 2018. A pesquisa constatou que cerca de 10% das vítimas de estupro possuíam alguma deficiência e, além disso, 12,2% do total de casos de estupros coletivos foram contra vítimas com alguma deficiência. Outro dado preocupante foi a baixa cobertura dos procedimentos realizados no socorro às mulheres com deficiência estupradas, que não alcançaram nem metade dos casos na profilaxia às Infecções Sexualmente Transmissíveis (39,6%), HIV (27,6%); coleta de sangue (45%), coleta de sêmen (6,8%); coleta de secreção vaginal (15,5%); contracepção de emergência (26%); e aborto previsto em lei (1,5%). Esses dados são alarmantes, tanto por não darem conta, levando em consideração as barreiras impostas, da dimensão do número real de mulheres com deficiência submetidas a essas violências, como também por escancarar que, mesmo quando acessam os serviços de saúde, elas não recebem o tratamento adequado.

Precisamos reconhecer que a negação da integralidade da mulher com deficiência resulta nesses atendimentos precários, que invisibilizam nossos corpos e os colocam em um lugar secreto, sem acesso a informações sobre o exercício seguro da sexualidade e de nossos direitos reprodutivos. Casos como esterilização compulsória, falta de encaminhamento a exames ginecológicos e indicação de aborto para mulheres com deficiência que desejam ser mães e não corem risco clínico de vida, são exemplos que nos sentenciam a vulnerabilidade e a subordinação do entendimento sobre o nosso corpo ao outro. Negar o desejo e o direito a uma vida sexual implica em negar a natureza humana dessa pessoa e, consequentemente, todos os seus demais direitos. No sentido mais amplo e contemporâneo, saúde sexual e reprodutiva é, sobretudo, uma questão de cidadania e não um estado biológico, independente do social.

Como já citado, a dificuldade em reconhecer a mulher com deficiência pelo viés de gênero a coloca em um lugar de vulnerabilidade, inclusive, para adquirir o HIV. Em contrapartida, muitas mulheres vivendo com HIV e/ou aids podem adquirir deficiência devido à falta de acesso ao tratamento adequado, o impacto do vírus no sistema nervoso central, a doenças oportunistas e ao próprio uso de antirretrovirais. Esses dados demonstram a necessidade de aprofundar a correlação entre HIV e deficiência e reforçam que a luta contra a aids é um tema que intersecciona gênero, sexualidade e deficiência.

O Brasil, ao ser signatário da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e incorporá-la em sua Constituição, reconhece que mulheres e meninas com deficiência estão sujeitas a violências e outras discriminações e se compromete a adotar medidas que assegurem nossa proteção. Mesmo assim, seguimos invisibilizadas por um capacitismo perpetuado em todos os espaços, incluindo do poder público.

Nossas questões, enquanto mulheres com deficiência, não são separadas das lutas feministas, por isso reiteramos a necessidade de compreender que a deficiência, assim como gênero, raça/etnia e sexualidade, nos submete a discriminações que acentuam violações de direitos. Desconsiderar a importância de interseccionalizar esses temas é desconsiderar o impacto dos marcadores sociais e, mais do que isso, nos negar a condição de humanas.

* Vitória Bernardes é psicóloga, ativista pelos direitos das mulheres com deficiência e conselheira nacional de saúde. Integrante do Coletivo Feminista Helen Keller de Mulheres com Deficiência.

 

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Referências

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FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2018. Disponível em: http://www.forumseguranca.org.br/publicacoes/anuario-brasileiro-de-seguranca-publica-2018. Acesso em: 20/08/2018.

HIV/AIDS e a visão. In: Hospital Rui Marinho. Disponível em: http://hospitalruimarinho.com.br/blog/2016/12/06/hiv-aids-e-a-visao/. Acesso em: 20/08/2018.

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo Demográfico 2010. Disponível em ftp://ftp.ibge.gov.br/Censos/Censo_Demografico_2010/Caracteristicas_Gerais_Religiao_Deficiencia/caracteristicas_religiao_deficiencia.pdf. Acesso em: 20/08/2018.

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Pauta Feminina: novos dados dimensionam a violência sexual contra a mulher com deficiência. In: Agência Senado, dez 2017. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2017/12/07/pauta-feminina-novos-dados-dimensionam-a-violencia-sexual-contra-a-mulher-com-deficiencia. Acesso em: 20/08/2018.

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