O jornalista paulistano Paulo Giacomini, de 56 anos, é um dos soropositivos mais longevos da capital. Convive com o vírus há pelo menos 36 anos — ele o contraiu um ano depois que os primeiros casos de aids começaram a ser registrados no mundo, em 1981. Seu sistema imunológico é equivalente ao de uma pessoa saudável. Além disso, sua carga viral é indetectável, ou seja: a presença do vírus é tão ínfima em seu organismo que ele não o transmite a ninguém, mesmo que faça sexo sem camisinha.
O jornalista faz parte do grupo dos 70 000 soropositivos paulistanos que, graças à evolução no tratamento da aids, está vivendo mais e melhor. Como resultado disso, o número de mortes também vem caindo nas últimas décadas. No Estado de São Paulo, segundo dados da Secretaria de Saúde, baixou de 7 000 ao ano na década de 90, em média, para 2 500 nos dias atuais. “As pessoas até podem pegar o HIV, porque, infelizmente, a prevenção pode falhar. Mas, se elas fazem o diagnóstico rápido, começam o tratamento e o seguem com regularidade, provavelmente nunca desenvolverão a aids e vão morrer de outra coisa”, explica Artur Kalichman, coordenador do Programa Estadual DST-Aids em São Paulo.
O preconceito ainda existe, e muitos soropositivos optam por manter sua condição em segredo até para pessoas próximas — o que dificulta o levantamento de dados estatísticos sobre essa população. “É uma doença que carrega um estigma muito grande até hoje, mas, em comparação com 25 anos atrás, melhorou bastante”, acredita o médico Francisco Ivanildo de Oliveira Junior, supervisor do ambulatório do Instituto Emílio Ribas.
Em junho de 1992, no auge da epidemia, Veja São Paulo publicou uma capa sobre o assunto. Naquele ano, expressões que hoje ferem qualquer sensibilidade, como “aidéticos”, eram usadas para identificar os soropositivos, e os próprios médicos encaravam o vírus como uma sentença fatal. “O doente está dia e noite enfrentando a morte”, afirmou, na ocasião, a diretora de enfermagem do Emílio Ribas à reportagem.
Era uma época em que a doença estava associada aos homossexuais; tanto é que seu apelido era peste gay, rótulo que ajudou a aumentar o preconceito contra o público LGBT e a disseminar o HIV, já que os heterossexuais se consideravam imunes a ele. “Preconceito eu nunca deixei de sofrer. Mas hoje pesa mais o racismo do que o fato de ser soropositiva”, diz a artista plástica Micaela Cyrino, 29.
Todos esses avanços foram possíveis devido ao desenvolvimento dos antirretrovirais nos últimos anos. Desde 2014, pessoas que vivem com HIV podem usar apenas um comprimido por dia, o chamado 3 em 1, composto dos medicamentos tenofovir, lamivudina e efavirenz. Para se ter uma ideia, em 1996, quando o coquetel anti-HIV passou a ser disponibilizado no Brasil, eram até doze pílulas diariamente.
“Algumas tinham de ser ingeridas de estômago cheio; outras, de estômago vazio. Então, era um quebra-cabeça para montar os horários em que o paciente tinha de tomar medicação”, relembra o médico Oliveira Junior. “Diante da dificuldade, muita gente acabava não fazendo uso dos remédios corretamente, o que prejudicava o tratamento.”
No ano passado, foi disponibilizado na rede de saúde um novo coquetel, formado por dois comprimidos: um do medicamento dolutegravir e o outro que associa o tenofovir e a lamivudina. É tão eficiente quanto o anterior, com a vantagem de apresentar menor risco de efeitos colaterais sobre o sistema nervoso central, como tontura e alteração do humor. No mesmo período, foram aprimorados os processos para diagnosticar as chamadas doenças oportunistas, que atingem quem já desenvolveu a aids, entre elas a tuberculose.
“Hoje dispomos de exames mais sensíveis para isso, como as técnicas de biologia molecular”, conta o médico infectologista Jean Gorinchteyn, do Emílio Ribas. “Além dos medicamentos antirretrovirais mais potentes, a maior precisão no diagnóstico contribuiu para reduzir a mortalidade de soropositivos na instituição.” De fato, no início dos anos 90, eram registrados sessenta óbitos no hospital por mês. Hoje, o número varia entre dez e quinze, em média.
Um novo avanço foi registrado neste ano. Pesquisadores da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) anunciaram no fim de abril o desenvolvimento de dois novos tratamentos que, aliados à aplicação de uma vacina, poderiam eliminar de vez o vírus do organismo de soropositivos, ou seja: levar à cura definitiva. “Já iniciamos os testes em humanos, e os resultados têm sido satisfatórios”, afirma Ricardo Sobhie Diaz, chefe do laboratório de Retrovirologia da Unifesp.
O resultado final será apresentado em julho, no Congresso Mundial de Aids, que acontece na Holanda. Em meados de 2016, um grupo de médicos de seis países — Estados Unidos, Inglaterra, Austrália, Dinamarca, Canadá e Suíça —, com base nas pesquisas mais importantes sobre o assunto, assinou um documento em um congresso em Paris, na França, atestando que todos os soropositivos que se submetem ao uso dos coquetéis regularmente (por no mínimo seis meses, de forma contínua) têm uma carga viral indetectável.
Ou seja, assim como o jornalista Paulo Giacomini e os demais soropositivos citados nesta reportagem, essas pessoas não desenvolvem doenças oportunistas nem transmitem o vírus. Isso acontece porque os medicamentos reduzem a presença do HIV no organismo a quantidades ínfimas. No entanto, se o indivíduo parar de tomar os remédios, o vírus voltará a proliferar.
A evolução do tratamento surtiu ainda bons resultados na prevenção da doença. Nos últimos anos surgiram comprimidos para proteger as pessoas do contágio antes e depois das relações sexuais. A profilaxia pós-exposição (PEP) está disponível desde 2010 para aqueles que tiveram contato recentemente com o HIV e consiste na ingestão de antirretrovirais, durante 28 dias, para evitar a infecção. A profilaxia pré-exposição (PrEP), por sua vez, é novíssima. O medicamento passou a ser distribuído gratuitamente no país, sob o nome comercial de Truvada, em janeiro. Para proteger contra o HIV, deve ser tomado diariamente, como se fosse um método anticoncepcional.
Todas essas notícias positivas, entretanto, também tiveram efeitos danosos. A sensação de que a aids não seria mais uma doença fatal, e sim algo crônico, como a hipertensão ou o diabetes, afrouxou as campanhas de prevenção e, como consequência disso, levou ao aumento do número de casos de contaminação entre os jovens que nasceram a partir da década de 90 e não acompanharam o auge da epidemia da doença.
Apesar de a quantidade de mortes por aids ter diminuído entre a população geral em todo o estado, ela quase triplicou no grupo de adolescentes entre 15 e 19 anos na última década. Passou de 2,4 casos por 100 000 habitantes, em 2006, para 6,7 casos, em 2016. No mesmo período, enquanto na população geral a quantidade anual de novos casos de infecção por HIV caiu 25%, houve um aumento de 30% na faixa entre 15 e 24 anos.
“A banalização da doença fez com que muitos jovens descartassem o uso de preservativos”, lamenta o médico Gorinchteyn. Por mais que atualmente os soropositivos consigam levar uma vida quase normal, eles correm um risco maior de adquirir doenças cardiovasculares, como infarto e derrame, e alguns tipos de câncer. Além disso, eles precisam tomar para sempre remédios pesados, que podem causar efeitos colaterais. “O ideal continua sendo não contrair o HIV”, conclui o médico Kalichman.
“A empresa me apoiou”
“As pessoas se assustavam”
“Somos sobreviventes”
“Foi muito pior ter câncer que HIV”
Cada vez mais jovens
30% é quanto cresceu o número de novos casos por ano de jovens entre 15 e 24 anos na última década
9 000 soropositivos que vivem na capital têm entre 15 e 24 anos
25% é quanto caiu o número de novos casos de HIV por ano na população geral no mesmo período
70 000 é o número total de pessoas diagnosticadas com HIV na cidade
Antes do coquetel
Famosos paulistanos que morreram quando ainda não existiam os antirretrovirais
Carlos Strazzer. Místico, tentou achar a cura no chá do Santo Daime, em vão. “O HIV é voraz”, dizia o ator. Morreu em 1993, aos 46 anos.
Thales Pan Chacon. Ficou meses doente, até falecer, em 1997, aos 40 anos, mas não foi ao hospital porque não queria expor sua intimidade.
Conrado Segreto. Um dos estilistas mais aclamados da década de 80, morreu em 1992, aos 32 anos, com apenas oito de carreira.
Fonte: Veja São Paulo