“Alguma coisa aconteceu comigo. Alguma coisa tão estranha que ainda não aprendi o jeito de falar claramente sobre ela. Quando souber finalmente o que foi, essa coisa estranha, saberei também esse jeito. Então serei claro, prometo. Para você, para mim mesmo. Como sempre tentei ser. Mas por enquanto, por favor, tente entender o que tento dizer.”

Esse é um trecho da “Primeira Carta para Além dos Muros”, do escritor Caio Fernando Abreu (1948-1996), crônica em forma epistolar, publicada no jornal Estado de S. Paulo em 21 de agosto de 1994, em que o autor revela publicamente sua vivência com o hiv/aids. A carta foi publicada no livro de correspondências do autor, Cartas – Caio Fernando Abreu (Aeroplano), organizado pelo poeta Italo Moriconi em 2002. O que Caio F., talvez, não pudesse imaginar é que justamente a sua dificuldade de falar sobre a sorologia positiva pudesse ajudar a outras pessoas a conversarem sobre o assunto.

Utilizei esse trecho como epígrafe e inspiração para organizar Tente entender o que tento dizer (Bazar Tempo, 2018) uma antologia de poemas, reunindo 96 poetas de diferentes gerações, gêneros e sorologias a escrever sobre hiv/aids – um tema que permanece rodeado de tabu e preconceito, também na literatura, mais de três décadas após o surgimento da epidemia. Escolhi como título uma passagem de texto de Caio F. por ele ter sido vítima da aids e, principalmente, por abordar a questão do hiv/aids de modo mais subjetivo e metafórico em seus textos, permitindo assim uma leitura mais aberta como a poesia.

A cineasta Emília Silveira nomeou o seu documentário, em parceria com o roteirista Miguel Paiva, sobre a trajetória de pessoas com hiv/aids (em que participo ao lado Bia Nickytinha, Silvia Almeida, Pierre Freitas, Brunna Valin) com mesmo título da antologia – Tente entender o que tento dizer (MPC Filmes, 2018) – por compartilhar também do entendimento da importância Caio F., e de sua saída do “segundo armário”, para uma nova ressignificação do imaginário do hiv/aids.

Assista ao trailer de Tente entender o que tento dizer, de Emilia Silveira


Agora o cineasta André Canto exibe nos cinemas sua bela homenagem ao escritor Caio Fernando Abreu com o documentário Carta para Além dos Muros (Descoloniza Filmes, 2019). O filme reconstrói a história do hiv/aids através de imagens de arquivos e depoimentos de ativistas, médicos e pessoas vivendo com hiv, além de costurar a narrativa com o depoimento de um jovem – com nome fictício de Caio, em referência ao escritor gaúcho – com dificuldade de falar abertamente de sorologia recém-descoberta no contexto do Brasil atual.

Assisti Carta para Além dos Muros, na companhia da artista Natália Guindani, e ainda sob o impacto do que vivenciei no cinema, posso afirmar que se trata de um filme histórico e extremamente necessário de ser visto por quem vive e convive com hiv– ou seja, todos nós, seres humanos vulneráveis. Além do mérito de ser o primeiro documentário a refazer a cronologia do HIV/aids no país, desde a chegada da epidemia na década de 1980 até hoje, o filme de André Canto tem a capacidade de escancarar como a discriminação é capaz de marginalizar e destruir a vida de quem vive com hiv.

Assista ao trailer de Carta Para Além dos Muros, de André Canto


O longa coloca em discussão as noções estigmatizantes de “grupos de risco” (homossexuais, prostitutas, hemofílicos, usuários de heroína e haitianos) e “populações vulneráveis”, termo atual que classifica de forma mais respeitosa as populações que estão em situações de maior risco de exposição ao vírus. Apesar do hiv/aids não significar mais sinônimo de pânico, medo e morte, como se revelou na primeira década da epidemia, percebe-se hoje que aprendemos muito pouco sobre como falar abertamente do assunto.

O documentário reúne depoimentos de pessoas como o da dermatologista Valéria Petri, responsável por identificar o primeiro caso de aids no Brasil; dos médicos Dráuzio Varella, Ricardo Tapajós, Paulo Roberto Teixeira, Marcia Rachid, Rosana Del Bianco, Artur Timerman, Ricardo Vasconcelos; dos ex-ministros da Saúde José Serra e José Gomes Temporão; de ativistas importantes como Veriano Terto e Richard Parker da ABIA (Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids), João Silvério Trevisan, Jacqueline Rocha Côrtes (aliás, assistam o documentário Meu nome é Jacque); até nomes mais jovens, não menos relevantes, do movimento de hiv/aids como Micaela Cyrino, Carué Contreiras, os youtubers Gabriel Comicholi e Gabriel Estrela, entre outras pessoas que atuam diretamente para mudar o rumo da história da aids no Brasil.

Todos os depoimentos são de relevância e iluminam os momentos marcantes da história do hiv/aids com informações detalhadas da luta para conter o avanço da epidemia, realizada por diversas pessoas que dão e deram à vida a causa (como é caso de Betinho, Herbert Daniel, Bruno Cattoni, Brenda Lee, Zé Araújo, Josimar Pereira Costa e tantos outros que se foram cedo demais) ou por grupos como o GAPA e Grupo Pela Vidda tão fundamentais no processo de resistência – ainda mais quando lidamos com um desgoverno federal conservador e moralista que promove um desmonte das políticas públicas de hiv/aids do país.

No filme, o depoimento do ativista e médico Carué Contreiras destaca uma questão que permanecia, até então, invizibilizada: a estimativa que LGBTs mortos por aids no Brasil a cada ano. No ano de 2017, o número de gay mortos pela aids foi pelo menos 8,7 vezes superior que o número de morte por violência LGBTfóbica, de acordo com cruzamento de dados do Boletim Epidemológico de hiv/aids 2018 do Ministério da Saúde. Ele também revela outro dado alarmante, que pelo menos 33% de todas as mortes por aids no Brasil são LGBTs. Segundo Contreiras, os dados são silenciados pelo Governo e por uma parcela do movimento LGBTs, em sua maioria cis e brancos, que não enxerga a aids como ameaça por conta de seus privilégios, se comparado com um grupo mais vulnerável de mulheres cis, pessoas trans e pessoas negras.

Outra fala que nos faz refletir é da médica Marcia Rachid, pois desmonta o discurso falacioso, muito adotado pelo governo e instituições, de que o jovem de hoje está entre as principais vítimas da infecção de hiv/aids porque não viu a “cara da morte”, que tanto se estampou jornais, noticiários de TV e revistas semanais nas décadas anteriores. A médica esclarece que não é esse o motivo, pois o jovem se infecta com o vírus, simplesmente, porque é jovem – como um jovem de qualquer época age como jovem, com impetuosidade, colocando-se em situações de risco. Afinal, se tal argumento fosse verdadeiro, dos anos 90 para cá não haveria epidemia. Pois, o que mais a imprensa fez foi associar o hiv/aids a morte e ao sofrimento, além de culpabilizar os gays.

Quer exemplo mais cruel do que o que fizeram com o cantor e compositor Cazuza (1958-1990)? Ele foi exposto na fatídica capa da revista Veja, de abril de 1989, que trouxe uma matéria assinada pelos repórteres Ângela Abreu e Alessandro Porro, tendo como manchete: “Cazuza, uma vítima da aids agoniza em praça pública”. Na ocasião, Cazuza ficou revoltado e com a saúde delicada teve de ser hospitalizado no mesmo dia em que teve acesso à revista pelas mãos do pai, que sentiu vontade de matar o jornalista – como conta Lucinha Araújo em depoimento ao documentário. Vale complementar que o Cazuza chegou a escrever uma carta de repúdio intitulada “Veja, a agonia de uma revista”. A jornalista Ângela Abreu acusou Alessandro Porro pela responsabilidade da edição e pediu demissão da revista, após uma manifestação de repúdio da classe artística divulgada pela imprensa e lida por Marília Pera no II Prêmio Sharp de Música.

No filme, inclusive, há um áudio de uma entrevista de Cazuza para a TV Bandeirantes, em 1988, que esclarece muito sobre preconceito que sofrem as pessoas que vivem com hiv/aids, advindo principalmente de setores mais conservadores da sociedade:

“A aids caiu como uma luva, modelinho perfeito da direita e da Igreja. A aids caiu assim como um taileur para eles, que nunca estiveram tão elegantes… e deselegantes principalmente”.

É estranho ouvir esse depoimento do Cazuza e perceber que de lá pra cá mudou tão pouco, mesmo diante do avanço das novas terapias antirretrovirais, o enfrentamento do estigma e preconceito prevalece tendo os mesmos personagens como antagonistas.

Em pleno ano 2019, quando se consegue esclarecer a diferença entre a vivência com hiv e o adoecimento por aids, a epidemia continua a atingir diretamente os mais excluídos: a população negra e LGBTTQIA+. Por esse motivo é que se torna fundamental no filme o depoimento da artista e ativista Micaela Cyrino, que vive com hiv desde a barriga da mãe, ao fazer um panorama do contexto atual da luta social em prol a dignidade e o respeito das pessoas que vivem com hiv/aids, denuncia morte da população negra vítima da epidemia como um genocídio financiado pelo poder público.

A fala de Micaela me fez lembrar o texto do ativista Carlos Henrique Oliveira – “HIV/aids e racismo: alta mortalidade da população negra em pauta” (Agência Aids – 27/02/2018) que expõe uma reflexão e denúncia sobre o assunto, ressaltando que: “O risco de uma pessoa preta, infectada pelo hiv, morrer por aids é 2,4 vezes maior do que o de uma pessoa branca segundo a Vigilância Epidemiológica do Programa Estadual de DST/aids de São Paulo, no seminário de raça/cor do Programa Municipal de DST/aids de São Paulo realizado em outubro de 2016”.

Imagens de arquivos e entrevistas com médicos (infectologistas, sanitaristas e dermatologistas), pessoas que vivem com hiv, ativistas e figuras públicas orientam o olhar atento e sensível de André Canto em Carta para Além dos Muros para construção da narrativa. É impactante, por exemplo, a reportagem do Fantástico, de 1982, em que os entrevistados, sem constrangimento, dizem que a nova doença surgida naquela ocasião era um “castigo divino” para os homossexuais.

Tal pensamento – infelizmente presente na cabeça de ignorantes e desinformados ainda hoje, principalmente, no discurso preconceituoso de fundamentalistas religiosos – é fruto da “epidemia discursiva” dos jornais que construíram uma narrativa de culpabilização da população lgbttqia+, especificamente homens gays, chegando a estampar manchetes de jornais da época com expressões como “câncer cor de rosa”, “praga dos homossexuais”, “peste gay”… A consequência é um imaginário relacionado ao hiv/aids repleto de estigma, desinformação e preconceito que tanto dificulta a vida de quem recebe a um resultado reagente para hiv.

Carta para Além dos Muros manifesta que, apesar dos avanços médicos, ainda temos um longo caminho para mudança de mentalidade em relação ao preconceito com que vive com hiv/aids. Espero que a evidência do documentário nos estimule a falarmos mais sobre o assunto – em casa com a família, na mesa do bar com os amigos, na cama com os parceiros, no trabalho com os colegas, ou nas redes sociais – pois só assim, com diálogo, a informação será maior que preconceito.

Quanto ao resto: “Vamos pedir piedade / Senhor, piedade! / Pra essa gente careta e covarde / Vamos pedir piedade / Senhor, piedade!”

* Ramon Nunes Mello (Araruama/RJ, 1984) é poeta, jornalista e ativista dos Direitos Humanos. Mestre em Literatura pela UFRJ, é autor dos livros de poemas Vinis mofados (2009); Poemas tirados de notícias de jornal (2012) e Há um mar no fundo de cada sonho (2016), A menina que queria ser árvore (2018) entre outros títulos. E organizador de Tente entender o que tento dizer: poesia + hiv/aids (2018) e Ney Matogrosso – Vira Lata de Raça (2018).