Por Renata Carvalho*

18/03/2017 – No ultimo dia 11 de março, no Instituto Tomie Ohtake, o Movimento Nacional de Artistas Trans (travestis, mulheres e homens trans do todo Brasil) lança o manifesto:    

“Representatividade Trans Já – Diga não ao Trans Fake”.

Mas o que seria um Trans Fake?

É um ator cisgênero interpretando um personagem transgênero, por isso o fake de falso. Trans Fake (Trans Falso).

Nós artistas trans estamos buscando visibilidade, representatividade, oportunidade e emprego.

Precisamos que olhem de verdade para as questões de nossa população. Estamos sendo mortas diariamente das formas mais cruéis. Somos linchadas à luz do dia. Somos censuradas, proibidas, expulsas e banidas de vários meios sociais. Somos invizibilizadas tanto em vida quanto na morte. Precisamos mudar essa realidade. Precisamos ser vistas, enxergadas e reconhecidas.

Quantas travestis você já viu como secretaria? Como balconista? Como vendedora?

O mercado de trabalho não nos aceita.

Estamos mais de 90% na prostituição. As instituições de ensino não estão preparadas para nos receber, muitas de nós abandonam os estudos pelo preconceito. Não temos direito a identidade e o gênero que nos reconhecemos. Direitos básicos nos são negados diariamente, desde usar o banheiro de acordo com nossa identidade como o uso do nome social.

A sociedade não nos respeita e não nos aceita.

Somos motivo de chacota, risos, apontamentos, cutucões e xingamentos…e são tantos…e tantos…do risível para a vergonha. Ninguém nos quer por perto, temos que existir bem longe, para ninguém ver ou ficar sabendo. Ninguém torce para ter uma travesti na família, somos muitas vezes apagadas dela, que nos expulsam na sua grande maioria aos 12, 13 anos.

Nossa transfobia de cada dia…

Por décadas fomos marginalizadas, guetizadas e jogadas nas esquinas, mas essa realidade precisa mudar. E este é o papel da arte, o da mudança, o de transformar, o de discutir, questionar o seu tempo. Este é o nosso papel como artistas.

Entendo, de verdade, a importância da discussão que uma novela pode levantar quando se coloca entre os personagens um trans, entendo quando querem denunciar o crime da travesti Gisberta. Entendo perfeitamente como travesti e atriz o poder de alcance que uma novela pode ter. Sei o quão importante e necessário são as questões T.

Por isso a representatividade se faz tão importante. Precisamos desmistificar lendas e tabus que rondam nossa população. É urgente, é agora.

Mas não viemos para atacar e sim para somar, partilhar.

Não viemos ou queremos xingar, crucificar ou  rechaçar atrizes como Carolina Ferraz que estreia no próximo dia 30 de março o filme “ A Glória e a Graça” onde ela faz o papel de uma mulher trans, por mais que não consiga entender como fazer um papel desse e buscar a masculinização.

E nem fazê-lo com o ator Luis Lobianco (mesmo este integrante do “Porta dos Fundos” um dos canais MAIS transfobicos que eu conheço– deixemos isso de lado por enquanto). Em um monólogo onde ele conta a trágica morte da travesti Gisberta, símbolo de luta e que mudou definitivamente as leis de Portugal (mesmo não a representando), mesmo assim eu como artista não consigo entender como alguém pode querer contar uma história como a da Gisberta e não ter uma pessoa trans no elenco?

E tão pouco fazer uma campanha boicotando a novela, da escritora Gloria Perez “Força de um querer”, onde a atriz cisgênero Caroline Duarte fará um homem trans na sua nova trama das nove. Coloco-me veemente contra, que uma atriz cis interprete um homem trans. E vale lembrar que a autora toca no tema da transexualidade e travestilidade a um bom tempo em suas novelas: em 1995 em “Explode Coração” Floriano Peixoto interpretava “Sarita”; em 2012 na novela “Salve Jorge” trouxe Maria Clara Spinelli e Patrícia Araujo.

Ou quando simplesmente nos colocam lá de fundo, em participações pequenas, só para constar, não nos reconhecendo como artistas. Vale lembrar que a discussão fica como nossas participações: Em segundo plano.

Mas que devemos e vamos nos colocar, argumentar, criticar e nos pronunciar SIM. E dizer que somos totalmente contra ao Trans Fake, e que iremos a publico sempre nos posicionar.

Acreditando na arte como símbolo de luta e resistência. Assim aconteceu com as mulheres e os negros exigindo seus lugares.

Entendendo a arte também como sendo um espaço de troca, de soma e de parcerias. E dizer que do lado de cá, de nós travestis, mulheres e homens trans, só nos foram tirados.

Precisamos falar sobre representatividade. Somos o país que mais mata travestis e transexuais no mundo. Nossa segunda causa de morte é o suicídio, a estimativa de vida média da nossa população é de apenas 35 anos. Precisamos lutar pela normalização e humanização de nossos corpos e identidades.

Cansamos de servir apenas como experimentos cênicos e acadêmicos.

Não queremos falar desse filme, ou daquela novela ou peça: já foram filmados, editados, lançados, escolhidos e encenados. Mas usaremos eles como exemplos, torcendo para que um dia isso acabe  e que seja  tão de mal gosto fazer o Trans Fake, assim como é hoje com o Black Face (quando um ator branco pinta seu rosto de preto).

Queremos falar, olhar, participar dos próximos filmes, das próximas novelas, dos próximos espetáculos.

Não estamos aqui para ditar regras, ou dizer o que o outro deve ou não fazer.

Isso pertence a cada artista, cada autor, diretor, produtor, cada ator e atriz cisgênero. São esses que devemos sensibilizar, humanizar e fazê-los enxergarem os reais  problemas que nossa população enfrenta diurtunamente. E sensibilizar o publico para que eles como consumidores exijam que artistas trans interpretem personagens trans. Precisamos combater a transfobia. Não existe meia representatividade. Ou se têm ou não.

Estamos aqui para dizer que existimos SIM. Que resistiremos e lutaremos, acreditando sempre que juntxs somos mais fortes.

E acabo este pensamento me questionando como atriz e travesti:

Quando poderemos ser protagonistas de nossas próprias histórias?

 

Te convido a conhecer nosso Movimento e ler o Manifesto. Aproveite e curta nossa página “Representatividade Trans Já”.

 

*Renata Carvalho é atriz, diretora e produtora teatral. Agente de prevenção voluntaria em Santos –sua cidade natal–, trabalhando especificamente com a população de travestis e mulheres transexuais. Atualmente, está com o monólogo “O evangelho segundo Jesus, Rainha do céu”, onde vive Jesus de Nazaré que volta nos dias de hoje como uma travesti. Integrante e Produtora do grupo “O Coletivo”. Integrante do Movimento Nacional de Artistas Trans.