“Eu sou paraibana, nasci em João Pessoa, saí da Paraíba e fui morar em Missão Velha, com a minha avó e minha mãe. Minha mãe faleceu quando eu tinha sete anos de idade, ela teve depressão pós-parto e tocou fogo no próprio corpo. Com a morte dela, eu fiquei saracoteando entre Missão Velha, no Ceará, Crato, Guatu e Juazeiro. Dos meus sete até os onze anos e meio de idade, minha avó me mandou de volta para a Paraíba para casa do meu pai onde eu fiquei, mais ou menos, por uns seis meses morando com ele, mas fui expulsa de casa porque meu pai não queria ‘filho viado’. Ele me deu um tapa na cara e me derrubou de um banco, dizendo que eu estava o desonrando. A partir daí, eu fui morar na casa de três senhoras que não eram da família. Foram estas senhoras que me deram a base para que eu chegasse aqui hoje. Elas que me deram a oportunidade de estudar […].” A fala é de Renata de Moraes Pessoa, mais conhecida por seu nome artístico: Renata Peron. Mulher trans e nordestina, é uma cantora brasileira, atriz, assistente social e ativista histórica pela causa trans.
Em entrevista à Agência Aids, ela falou sobre sua trajetória de luta, garra, resiliência e superação. “Dos dezessete aos vinte e sete anos de idade eu fui morar em Juazeiro da Bahia, onde tinha um irmão e o escrevi uma carta pedindo para ir morar com ele. Fiquei lá dez anos. Quando eu cheguei, meu irmão não me quis porque eu era muito ‘afeminado’. Até então, ele não tinha ainda percebido que para além de ser gay, eu era uma travesti, uma mulher trans”, relembrou Renata que assumiu sua identidade com o passar do tempo.
Representatividade
Ela contou que suas musas inspiradoras, Rogéria e Roberta Close, ícones da televisão brasileira, lhe ajudaram a se descobrir enquanto pessoa tras e possibilitaram projetar seu futuro. “Eu olhei e questionei. ‘O que é isso? Travesti? Ah, então é isso que sou’. Ali já me encontrei, mas pelas violências eu não podia assumir minha transexualidade.”
Aos 17 anos, Renata já se identificava como uma mulher transexual. No entanto, no auge dos seus 27 anos, resolveu se mudar para São Paulo para viver e expressar livremente a sua transexualidade, lugar onde ela permanece até hoje, aos quase 47.
Além de cantora, atriz e militante aguerrida, hoje é formada assistente social e se define como artivista. “Eu já retifiquei meu nome, hoje meu nome de registro é Renata de Moraes Pessoa e tenho meu nome artístico que é Renata Peron”, disse.
A artivista ainda relembrou o momento que entrou na política, saindo candidata a deputada federal, e também a fundação da sua ONG CAES, uma associação que nasceu com o intuito de abraçar e ajudar outras travestis e transexuais.
Conquistas históricas
“Eu criei a Caminhada Trans em São Paulo, participo dos movimentos aqui há vinte anos, viajei para Brasília para abraçar o STF, pedindo que olhassem para nós com relação a questão da união estável… e até hoje estou nesse jogo. Atualmente, eu sou assessora parlamentar do deputado Guilherme Côrtes na Assembleia Legislativa de São Paulo”, compartilhou.
Militância
Sobre a sua militância em defesa da população trans, Renata contou que começou depois dela ter sofrido agressão. “Em 2007, o movimento realmente chegou até mim para fazer a defesa da nossa pauta LGBT+, sobretudo da pauta trans, quando eu fui violentada na Praça da República por nove caras e acabei perdendo um rim.”
Ela continuou: “Com isso eu vi a negligência do estado e queria fazer alguma coisa. Foi a partir daí que me veio a ideia de criar a ONG e de entrar em um curso universitário na área da Assistência Social para participar e incidir em grupos LGBTs, grupos trans, ir me empoderando e fazendo a defesa da nossa luta […] por conta da negação do próprio estado.”
Naquele mesmo ano, processou o estado pela falta de segurança pública na região, mas Renata perdeu o processo. “Me alegaram que a culpa de eu ter sofrido essa agressão era minha. Segundo eles, era minha porque eu era um ‘menino que queria ser uma mulher me comportando do meu jeito’. Isso me indignou e entendi que não podia ser agredida por ser eu mesma.”
Vida e política
Este revoltante e traumatizante episódio em sua vida, segundo ela, também serviu como fio-condutor para que a ativista se envolvesse na política para tentar sua candidatura, reivindicando por mais corpos travestigêneres na política institucional e garantia de direitos; mas destacou: “Representatividade é uma coisa, visibilidade é outra coisa muito diferente!”
“Uma coisa é a sociedade dar visibilidade a nós e outra coisa é você se sentir pertencente daquele lugar e se sentir, de fato, representada por alguém que fala a mesma língua que a sua naquele espaço. E por sentir falta disso, de não ter uma travesti ou uma trans, eu falei: ‘bom vai ter que ser eu’. Me candidatei a deputada federal pelo PSOL, tive 13.220 votos, sendo votada em 388 cidades, com 7 mil reais que o partido me deu; quando consegui essa quantidade toda de votos ali eu percebi que tinham sim pessoas que queriam me ouvir, haviam pessoas que queriam representantes como eu. Depois veio a Érika Hilton, que se candidatou e ganhou quatro anos depois de mim […]. Percebemos que não é que não tenha alguém que queira votar na gente, mas é que tem o momento certo, precisa ser bem articulada e saber fazer as movimentações. Porque a Erika Hilton ganhou e não foi com tanta grana também.”
“Chegamos em uma onda de que a sociedade quer ter pessoas que as representem, ou seja, uma negra, uma travesti, uma gorda, uma jovem…”
Ainda falando de política, ela analisou o cenário atual e abordou a complexidade da garantia de direitos da população LGBT+, destacando principalmente a importância da inclusão e representatividade para a comunidade transgênero.
Renata Peron entende que, apesar de avanços, a efetiva conquista de direitos para a população LGBTQIAPN+, sobretudo a comunidade trans, ainda é um processo em desenvolvimento. Comparando a trajetória a uma criança que aprende a caminhar, ela ressalta que, nos últimos anos, testemunhou a presença de travestis em posições de destaque, algo impensável anteriormente. Contudo, ela enfatizou a necessidade de avançar ainda mais, buscando um futuro onde a visibilidade e os direitos da comunidade trans sejam integrados socialmente de forma natural, eliminando a necessidade de dias específicos para debater estas questões.
“Nós começamos essa luta engatinhando e agora nós estamos como quando uma criança começa a caminhar. Há dez anos era inimaginável ver uma travesti em qualquer cargo de mandato, seja como deputada, seja como diretora de alguma grande empresa… Então nós avançamos, mas precisamos avançar mais. Eu quero chegar em um momento em que não precisemos mais ter o dia da visibilidade trans, o dia da visibilidade preta… mas que as pessoas sejam elas e que tenham seus espaços, livres da estigmatização.”
“Nós ainda somos o país que mais mata travestis transexuais no planeta. Nós não caímos no ranking estatístico de países que mais matam pessoas trans e travestis, nem superamos a média de vida de 35 anos para pessoas trans, que morrem por simplesmente serem quem são, por serem elas mesmas. Então, se a gente avançou não é porque o estado nos percebeu e percebeu que tinha que fazer um reparo histórico, mas sim porque nós pessoas trans e travestis abrimos as nossas mãos, pegamos uma na mão da outra e há 20 anos fomos até Brasília com a campanha ‘Travesti é Respeito’ […] e foi a partir desse grito lá que se reverberou aqui e para todo o país, que souberam que nós não íamos mais ficar caladas ouvindo as barbaridades que a gente ouvia, as violências que a gente sofria, seja física, psicológica, institucional… a gente apanhava até da própria polícia, sem motivo nenhum. Eu tenho amigas que eram enquadradas como vadiagem, porque estavam apenas na rua andando. Então não foi o Estado que disse: ‘vamos reparar o tanto de desgraça que a gente fez com essas meninas’. Não! Fomos nós mesmas que dissemos: ‘epa, peraí, chega! Já sofremos demais, já apanhamos demais, agora a gente quer que os nossos direitos sejam respeitados, nós queremos que a Constituição seja cumprida”. Tudo que a gente reivindica está escrito na Constituição, só não tem a efetividade da ação, então precisa que uma travesti ou uma trans esteja lá o tempo todo gritando, reivindicando uma coisa simples que é direito à vida, o direito de ter dignidade, de sair, de não ter o corpo espancado, de ter um namorado, de se casar, de constituir família. Os direitos humanos mais simples […] Há quem diga que a gente quer privilégio. Que privilégio a gente quer? O privilégio de andar, o privilégio de viver? de não ser espancada? de ser chamada pelo nome correto? Isso é privilégio?”, questionou.
O envelhecer trans no Brasil
Apesar de alertar sobre a violência fruto da transfobia sistêmica, no contraponto a essa realidade sombria, Renata reconheceu que muitas trans e travestis estão contrariando essas estatísticas, envelhecendo e superando desafios.
Ao discutir o envelhecimento trans, a artista e militante reforçou que o fenômeno está ocorrendo porque parte da comunidade trans compreendeu a necessidade de lutar contra a violência para sobreviver. Ela também apontou a importância das organizações não governamentais na coleta de dados, uma vez que o censo não inclui informações específicas sobre a população LGBT brasileira.
“Agora estamos envelhecendo porque uma parte das travestis entendeu que teria que lutar para não morrer”.
Ancestralidade e coletividade trans
“Eu acho que o que salvou mais a gente, eu e tantas outras que estamos passando dos 40 anos, foi o fato de termos nos juntado, mesmo com quaisquer diferenças que a gente tenha, mesmo com as vaidades que possuímos por sermos seres humanos. A educação e a nossa união foram as coisas mais poderosas que nos salvou e empoderou!”.
“Que a gente possa de fato ter uma vida minimamente digna. A minha preocupação maior é uma travesti como eu e como tantas outras que nunca pagou o INSS na vida, nunca pagou uma previdência, como é que ela vai chegar? Então precisa que uma deputada, um deputado crie um projeto de lei para poder dar uma garantia de uma aposentadoria para estas. Para isso, a gente precisa que a política se renove com pessoas novas, novas vozes, com gente de sangue novo. Eu estou cansada. São 20 anos de militância, 20 anos falando, 20 anos dando entrevista para jornais, 20 anos dando entrevista para jovens formandos de serviço social, de psicologia, de advocacia, em faculdades particulares, faculdades privadas e estaduais. E o que me irrita muito é assim, a gente fica meio que enxugando gelo, sabe? Ativistas, pessoas que fazem seus mestrados e doutorados, ganham sua boa grana, mas eu pergunto: Vocês ajudam alguma instituição, vocês apadrinham ou amadrinham alguma travesti, adotam uma ação social? Por que que só nos procuram em janeiro? O mês da visibilidade trans é importante, eu sei, assim como, por exemplo, o dia da mulher; mas compram flores e dão para as mulheres no mês das mulheres, e desce o cacete nelas o ano inteiro. É agressão, violência, é assassinato. […] Eu sou trans o ano inteiro.”
Perguntada sobre qual seu maior sonho pessoal e coletivo, Renata finalizou: “Um sonho pessoal meu é ser reconhecida nacionalmente como uma cantora de samba; e que o livro que irei lançar contando a minha história, que é ‘Bendita Sois Entre as Mulheres’, bata recorde de vendas. E um sonho coletivo é que a gente não precise ter que ter uma data para falar sobre respeito ao ser humano.”
Na primeira semana de abril, será lançado o aguardado livro autobiográfico de Renata Peron, “Bendita Sois Entre as Mulheres”. Na obra, a artista revisita sua história.
Kéren Morais (keren@agenciaaids.com.br)
Dica de entrevista
Renata Peron
Instagram @renataperonoficial