Seis pacientes no estado do Rio de Janeiro foram diagnosticados com HIV após passarem por transplantes de órgãos, o que levou a Secretaria de Estado da Saúde a abrir uma sindicância para investigar o incidente. A secretaria classificou o episódio como “inadmissível” e mobilizou uma equipe multidisciplinar para oferecer suporte aos pacientes afetados. Esse é o primeiro registro de infecções por HIV em transplantes no Brasil, país que realiza esses procedimentos desde a década de 1960.

Os exames de triagem para detectar possíveis infecções nos doadores foram realizados pelo laboratório privado PCS LAB Saleme, de Nova Iguaçu, contratado pela Fundação Saúde em dezembro de 2023. Após a confirmação das infecções, o serviço foi imediatamente suspenso e o laboratório interditado. Desde então, os testes passaram a ser realizados pelo Hemorio.

Em entrevista a Band News FM Rio, a secretária estadual de Saúde, Claudia Mello, informou que a primeira notificação de infecção ocorreu em 13 de setembro e que uma nova confirmação foi feita no dia 2 de outubro. O laboratório responsável havia inicialmente reportado resultados negativos, mas após o transplante, os exames subsequentes confirmaram a presença do vírus. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e o Ministério da Saúde foram notificados.

Entre dezembro de 2023 e setembro de 2024, foram realizados 288 transplantes de doadores, e dois desses doadores testaram positivo para HIV após o procedimento. Todas as 286 amostras que inicialmente deram resultado negativo estão sendo reavaliadas.

A Secretaria de Saúde garantiu que a sindicância visa identificar os responsáveis e prometeu “medidas rigorosas para garantir a segurança dos pacientes.” A nota divulgada destaca a excelência do serviço de transplantes do estado, que desde 2006 já salvou mais de 16 mil vidas.

O Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ) também abriu um inquérito civil para investigar possíveis irregularidades, que está sob sigilo. A 5ª Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva de Saúde da Capital será responsável pela apuração.

Um caso raro no Brasil

A Agência de Notícias da Aids entrevistou infectologistas para esclarecer o caso.

A dra. Zarifa Khoury, do Instituto de Infectologia Emílio Ribas, explicou que, após o diagnóstico de HIV, os pacientes afetados deverão iniciar o tratamento, pois agora são pessoas vivendo com HIV e precisarão se cuidar continuamente. “Uma investigação deve ser conduzida para entender o que realmente aconteceu. Acredito que podem ter ocorrido três situações: o doador estava na janela imunológica, ou estava em tratamento com antirretrovirais, o que pode, em casos de uso prolongado, fazer com que a sorologia se torne negativa, ou então o kit utilizado estava fora da validade”, comentou a especialista.

A médica reforçou que pessoas vivendo com HIV não podem doar órgãos, mesmo que estejam com carga viral indetectável, pois o vírus permanece integrado no DNA. “Mesmo com a carga viral indetectável, existe o risco de transmissão do HIV para outra pessoa”, explicou.

Pelo Instagram, o infectologista Vinicius Borges, responsável pelo perfil Doutor Maravilha, destacou a preocupação com a sorofobia em torno do caso. “O doador, pelo que investiguei, já falecido, pode nem ter sabido que vivia com HIV. Nem a família. Não usem essa notícia para disseminar sorofobia! Cobrem os gestores! Esses políticos que enfraquecem o SUS e depois se surpreendem quando algo assim acontece”, escreveu o médico.

Borges ressaltou que não há motivo para pânico antes de uma investigação completa. “A discussão é mais sobre a qualidade e confiabilidade dos laboratórios que prestam serviços do que sobre o ato de realizar transplantes em si. Transplantes salvam vidas! Embora nunca haja risco zero em qualquer transplante, seja de órgãos ou de sangue, por isso há termos de consentimento. O conceito de indetectável = intransmissível vale apenas para a transmissão sexual. Para doação de sangue e órgãos, o risco ainda existe”, alertou.

Ele enfatizou que a questão central é a confiabilidade dos testes. “Se, para economizar, os testes estão sendo feitos por laboratórios sem idoneidade e sem fiscalização adequada, os riscos aumentam exponencialmente. A tecnologia existe. Está sendo aplicada? Desconfiem da gestão e da qualidade dos serviços, não do ato generoso e transformador da doação de órgãos. Aguardamos a sindicância e futuras elucidações”, concluiu.

O infectologista Álvaro Furtado, do Centro de Referência e Treinamento em DST/Aids de São Paulo, comentou o caso do doador de transplante que não foi triado adequadamente. “Isso nos assusta porque é algo muito sério, e o Brasil tem um programa de transplantes bastante consolidado”, afirmou. Furtado explicou que, sempre que há um doador de órgãos, é realizada uma triagem rigorosa para doenças infecciosas, que inclui testes para HIV, hepatites, doenças virais, protozoários, como a doença de Chagas e toxoplasmose, e, mais recentemente, até dengue.

Ele ressaltou que, ao realizar um transplante, é crucial garantir que o doador não tenha doenças infecciosas, pois o receptor é submetido a imunossupressão, que reduz a imunidade, deixando-o vulnerável a infecções graves. “No caso de HIV, há uma janela específica para coletar o teste sorológico no cadáver. Se o resultado for negativo, ele é confirmado por meio do teste NAT, um exame de biologia molecular com uma janela muito curta, que oferece maior segurança”, explicou.

Furtado afirmou que, aparentemente, no caso ocorrido no Rio de Janeiro, nem o teste inicial de triagem foi feito. “Lamentamos profundamente, pois é algo completamente prevenível. Embora seja uma situação extremamente grave, isso não deve desacreditar o nosso sistema de transplantes, que é robusto. Este foi um episódio inusitado e deve ser investigado com rigor.”

O infectologista ainda destacou a gravidade da situação, afirmando que alguns dos pacientes submetidos à imunossupressão desenvolveram rapidamente doenças relacionadas à aids. “Essa transmissão nunca deveria ter ocorrido, especialmente considerando que existe um protocolo de triagem rigoroso para evitar até mesmo a janela imunológica.”

Após a divulgação do caso na imprensa, na manhã desta sexta-feira (11), o secretário de Estado de Polícia Civil, delegado Felipe Curi, determinou a abertura de um inquérito para apurar o ocorrido. A investigação será tocada pela Delegacia do Consumidor (Decon), que cuida dos casos relacionados à saúde pública. Diligências já estariam sendo feitas.

Redação da Agência de Noticias da Aids com informações

Dica de entrevista

Dr. Álvaro Furtado

@dr.alvarocosta

Dr. Vinicius Borges

@doutormaravilha

Dra. Zarifa Khoury

@drazafira