*Este texto é baseado em uma reportagem de rádio que foi ao ar no programa “Outlook” da BBC em 2018. Alguns trechos foram atualizados. Você pode ouvir o programa original aqui (em inglês).

Em 1990, o bailarino belga Salim Gauwloos estava vivendo, no palco, o seu auge profissional ao acompanhar Madonna na famosa turnê Blond Ambition.

Longe dos holofotes, Gauwloos estava enfrentando o momento mais difícil de sua vida: o diagnóstico, revelado no final de 1987, de que havia sido infectado pelo vírus HIV, e o prazo de cinco anos de vida que os médicos tinham estimado.

Aquela turnê mundial de Madonna — que aliás, não veio para o Brasil — foi marcada não só pelo sucesso, mas também por atitudes ousadas para a época, como dançarinos usando figurinos religiosos e várias referências ao sexo, como a simulação de uma masturbação durante a apresentação da música Like a virgin.

Não fazia tanto tempo que o vírus do HIV tinha sido identificado, em 1983, e Madonna com frequência se pronunciava sobre a importância da prevenção e se colocava contra a discriminação de pessoas infectadas.

Na turnê Blond Ambition, Salim Gauwloos lembra que, na música Into the groove, era frequente que Madonna falasse da importância de se usar camisinha.

Depois, soube-se que três dos sete bailarinos da turnê, incluindo o belga, tinham sido diagnosticados com infecção pelo HIV — mas ninguém, nem mesmo dentro da equipe, sabia disso na época.

Gauwloos revelou o diagnóstico anos depois, para o documentário Strike a pose, de 2016.

Gabriel Trupin morreu por problemas decorrentes da Aids em 1995; e Carlton Wilborn revelou o diagnóstico anos depois em um livro.

“Eu acho um pouco irônico porque era na música Into the groove que a Madonna falava sobre ter que colocar camisinha. E era Madonna, Gabriel, eu e Carlton que fazíamos esse número”, contou Gauwloos à BBC.

“Qualquer coisa que ela dissesse sobre Aids, dentro de mim eu sentia: ‘Ai, meu Deus, de novo não’. Mas provavelmente todos nós estávamos pensando isso”, diz o bailarino sobre ele e os colegas.

Gauwloos nasceu em 1968 e tem ascendência belga por parte de mãe e marroquina por parte de pai. Ele estudou por anos balé clássico e, em 1987, mudou-se para Nova York.

Naquele mesmo ano, começou a ter problema nos rins. Por não ter plano de saúde nos EUA, voltou à Bélgica para fazer exames.

“O médico disse: sinto muito, mas preciso te dizer que você é HIV positivo. Minha mãe estava do lado. Foi algo tão intenso, eu ainda fico emotivo sobre isso.”

“Meu mundo inteiro caiu. Eu queria ser um dançarino famoso, tinha tantas coisas que eu queria fazer… E além de tudo, aquela tinha sido minha primeira experiência sexual.”

“Eu tinha 18 anos. Todo mundo estava morrendo, amigos meus, todo mundo estava caindo como moscas.”

Já convivendo com a doença e com a perspectiva de poucos anos de vida, ele um dia viu no jornal um anúncio em que Madonna convocava bailarinos “ferozes” e “reais” — e não “aspirantes”.

“Uma das coisas mais legais foi que, normalmente, cantores normalmente vão aos testes perto da última etapa. Mas Madonna estava ali desde o começo”, lembra Gauwloos.

“Eu não tive nenhum retorno em duas semanas, até que ela me ligou em casa.”

“Ela me ligou pessoalmente. Ela disse: ‘E aí, aqui é a Madonna. Você quer vir na turnê comigo?’. Eu respondi: ‘Sim, com certeza’.”

O bailarino não tinha permissão para trabalhar nos EUA, mas a cantora disse para ele não se preocupar, pois providenciaria os documentos.

Gauwloos trabalhou por dez meses com Madonna, viajando para países como Canadá, Japão e Espanha. O sucesso da turnê foi tanto que até os bailarinos tinham seus próprios fãs.

“Eles ficavam esperando do lado de fora do hotel, com cartazes com nossos nomes. Eu ainda não consigo acreditar nisso, especialmente como um bailarino. Quem tem esse tipo de reconhecimento como dançarino?”, diz o belga, que até hoje trabalha como coreógrafo, professor de dança e bailarino.

Ele aparece várias vezes no filme Na cama com Madonna, de 1991, que acompanha a turnê. Em uma cena, a equipe — incluindo a “patroa” — está num restaurante e começa a brincar de “Verdade ou consequência”.

Em um momento do jogo, um bailarino ordena como “consequência” que Gauwloos beijasse Gabriel Trupin. O beijo também ficou famoso.

“Eu já tinha uma queda pelo Gabriel, então para mim foi a oportunidade perfeita para beijá-lo”, contou Gauwloos.

“Foi um beijo de verdade. Homens já tinham aparecido na tela se beijando, mas era algo mais encenado. Aquele foi um beijo real, bruto, emocional, passional.”

“E teve um impacto tão grande em tantos jovens que se sentiam estranhos. Ele fez vários homossexuais saírem do armário, em outras palavras”, brinca o bailarino, acrescentando ter recebido várias cartas de fãs dizendo que sua trajetória os ajudou em suas jornadas pessoais.

Seis dos sete bailarinos da turnê eram gays.

Gauwloos conta que, mesmo com o diagnóstico, nos anos iniciais não sentiu efeitos significativos da infecção por HIV, inclusive durante a turnê.

“Eu estava perfeito. Eu estava com uma aparência incrível, estava saudável e o que realmente me manteve vivo era dançar naquele palco. Era o único momento que eu realmente não tinha que me preocupar com nada.”

“Eu me sentia livre dançando com Madonna e com os outros bailarinos. Milhares de fãs gritavam por nós. Acho que isso me ajudou muito.”

Ele conta que, além da mãe, ninguém sabia do seu diagnóstico.

“Minha técnica de sobrevivência era apenas ignorar [a doença]”, lembra, acrescentando que não queria revelar seu diagnóstico no auge da turnê, pois isso “mudaria toda a energia” daquele momento.

Após dez meses, a turnê acabou e o belga conta que ficou “triste” por isso.

A rotina de palco deu lugar a uma rotina de festas e drogas. Entretanto, os flertes não passavam do beijo, pois o bailarino conta que tinha medo de infectar outras pessoas.

Já sem os documentos para trabalho que Madonna tinha conseguido para a turnê, Gauwloos ficou sem documentação de imigração nos EUA.

“Eu desisti de tudo. Eu pensava: eu vou morrer de qualquer forma.”

“Eu não tomava remédios porque tinha medo de que, se fosse para o hospital, poderiam chamar os funcionários de imigração e eu seria deportado. Até que eu desmaiei e não tive escolha.”

O bailarino ficou sozinho no hospital por três semanas até melhorar — e ninguém chamou os funcionários da imigração.

Ao redor de 2000, Gauwloos conheceu seu marido, Facundo Gabba, com quem está até hoje. O casamento e sua trajetória profissional permitiram que eventualmente obtivesse a cidadania americana.

O bailarino conta que Gabba foi a primeira pessoa para quem contou sobre o HIV.

“Quando eu disse que precisava contar algo para ele, ele ficou muito nervoso. Achava que eu ia contar que já tinha um namorado”, lembra Gauwloos.

“Foi tão bonito que, quando contei, ele disse: eu não ligo, eu te amo.”

“Muitas pessoas com HIV pensam: ‘Quem vai me amar com toda essa bagagem?’. E eu encontrei alguém que olha para além disso [da doença]”.

Gauwloos conta que não tem mais contato com Madonna, mas se lembra com carinho do ano de 1990.

Perguntado sobre como vê aquele jovem dançarino quando revê vídeos da turnê, o belga é “feroz” na resposta.

“Era um jovem bastante atraente”, brinca. “Eu tenho orgulho daquilo.”