Nos últimos dias tivemos, dentre os óbitos registrados pela COVID19,  alguns casos que despertaram a atenção e comoção generalizada: um advogado de 26 anos, uma policial de 29 e uma bebê de apenas 02 aninhos. Ao mesmo tempo as estimativas de especialistas apontam para cerca de 48% de internações de pessoas com idade inferior ao chamado ‘grupo de risco’. Parece que, apesar de termos feito tudo que fizemos, ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais (com o perdão do mestre Belchior). Uma das principais lições que a AIDS nos ensinou, e que foi jogada ao limbo do esquecimento, é de que o conceito de que apenas um restrito grupo de indivíduos é atingido por uma epidemia é uma falácia muito perigosa, pois leva todo o restante da comunidade a se expor sob o manto imaginário da proteção.

Quando a AIDS surgiu para o mundo no início dos anos 1980 a população mais atingida foi a de gays, especialmente aqueles que frequentavam saunas e outros locais de diversão sexual, fato que levou a ciência a forjar a expressão ‘grupo de risco’ para esse segmento, além de hemofílicos, prostitutas e usuários de drogas injetáveis. Isso fez com que o pânico se estabelecesse entre a comunidade LGBTT e o preconceito achasse sua ‘brecha científica’ para que as ‘famílias de bem’ pudessem discriminar essa mesma população. Acontece que 06 anos após o primeiro caso nasceu o primeiro bebê com HIV, o que sinalizou que outros grupos sociais também estariam sob o risco de contrair o vírus. Mas, como a principal característica do preconceituoso é a ignorância ou a maldade, a discriminação continuou e acabou produzindo um efeito colateral chamado de Terceira Lei de Newton que diz que aquilo que vai, volta.

Lentamente começaram a pipocar casos de homens heterossexuais nos serviços de atendimento em AIDS e, a seguir, mulheres e jovens induzidos a se julgarem imunes à infecção por não pertencerem ao grupo de risco. Com o tempo esse segmento começou a ganhar volume nos boletins epidemiológicos, mas até hoje pode ser ouvida a expressão ‘não sou veado, vou usar camisinha pra que?’. Claro que isso refletiu em uma explosão dos casos de HIV entre mulheres que não tinham condições de igualdade em suas relações e eram submetidas ao machismo nosso de cada dia nas relações sexuais. Com o tempo o conceito foi banido da luta contra a AIDS, adotando-se a ideia de ‘situações de risco’, uma vez que não eram determinados tipos de pessoas, mas tipos de comportamentos que levavam à infecção. Atualmente, aceita-se o conceito de vulnerabilidade, pelo qual é esta que determina o risco de infecção ao HIV em que se encontra uma pessoa.

Passadas quase quatro décadas e a história se repete. O mundo enfrenta a primeira grande peste do século 21 e, diante do pânico e desinformação, elege seu novo grupo de risco: idosos e pessoas com comorbidades. Que essas populações têm a saúde mais frágil para enfrentar a doença, não há dúvidas, mas o conceito foi expandido para a prevenção: ‘idosos, fiquem em casa!’. Ora, que mal teria se eu jogasse aquela pelada ou desse um pulo na praia com meu cachorro? O ser humano é assim, precisa da mais tênue desculpa para escapar de um comportamento mais seguro e restritivo, seja ele usar uma camisinha ou ir todos os dias ao supermercado. É preciso banir novamente essa expressão falaciosa para que a sociedade como um todo se sinta vulnerável ao novo coronavírus e se conscientize que o grupo de risco é aquele formado pelas pessoas que respiram e ponto.

 

*Beto Volpe, ativista e escritor