A violação de direitos humanos tem sido relatada ao longo da história, em suas diversas facetas e nuances; deve ser vista como uma das práticas mais perversas e abomináveis envolvendo o Homo sapiens. Num passado mais remoto, vista com naturalidade e aceitação até mesmo em antigas civilizações – que costumamos ter como referência e modelo nos mais diversos campos do saber, a forjar nossa “civilização” contemporânea. Seja de natureza racial, política, religiosa, de gênero ou até mesmo “cientifica” tem perpassado milhares de anos ao longo da existência da humanidade. Apesar de sua constatação e registro seculares, apenas em 1948 tornou objeto de uma ação concertada pelos povos e nações, por intermédio da Declaração Universal de Direitos Humanos, proclamada em Assembleia Geral das Nações Unidas. A despeito desse fato histórico, que finalmente estabeleceu parâmetros e diretrizes na área, a violação de direitos perdura, seja de modo explícito ou velado, e continua a fazer parte do modus operandi cultural ou a partir de premissas meticulosamente estabelecidas.
A ocorrência de conflitos, guerras e pandemias por si só já acarreta o agravamento de vulnerabilidades e exacerba a competição natural do ser humano por espaços mais favoráveis com vistas à sua preservação e daqueles que lhe são próximos. A perda de limites aceitáveis, todavia, gera o recrudescimento de circunstâncias adversas que se encontram presentes em graus diversos, segundo determinantes socioeconômicos e culturais de uma dada população.
A Pandemia gerada pelo SARS-CoV-2 ocasionou violação de direitos humanos desde o início de sua ocorrência e não me refiro ao isolamento de um imenso contingente populacional em Wuhan, local onde foram detectadas as primeiras ocorrências e o agravo foi identificado – Esta foi uma medida de caráter sanitário e essencial para reduzir o impacto de sua disseminação; O mesmo não pode ser atribuído ao cerceamento da disseminação da informação pelo governo chinês que, conforme difundido pela imprensa internacional, usou de medidas repressivas contra jornalistas e ativistas locais que ousaram revelar ocorrências relativas a pandemia naquela província. Não é de se surpreender, uma vez que a liberdade de expressão e a veiculação de informações, ainda que factuais desde que não correspondam à versão oficial, são violentamente reprimidos não apenas na China, mas em inúmeros países. Esta, pelo que se tem conhecimento foi a primeira violação dos direitos humanos registrada já durante os momentos iniciais da disseminação do SARS-Cov-2, tendo esse padrão se perpetuado ao longo da pandemia. “Em um comunicado no Twitter na segunda-feira, a embaixada britânica em Pequim disse que o caso de Zhang “levanta sérias preocupações sobre a liberdade da mídia na China”, acrescentando que um diplomata britânico tentou comparecer ao julgamento, mas não teve acesso. A embaixada disse que Zhang “é um dos pelo menos 47 jornalistas atualmente detidos na China. O paradeiro de outros jornalistas cidadãos – incluindo Chen Qiushi e Fang Bin – é desconhecido”. Na oportunidade, instou a China a “libertar todos os detidos por suas reportagens”. (Leia mais)
Um segundo aspecto que se pode ter em conta durante situações de epidemia, é a discriminação, que que normalmente envolve o paciente, familiares, colegas de trabalho e até mesmo um bairro ou determinada localidade. Isto ocorre de modo mais intenso quando se trata de agravos à saúde cuja disseminação se dá por não só por contato pessoal, mas também por contato indireto, como é o caso da covid, cuja transmissão se dá pelas vias aéreas. Ao lado de medidas protetivas necessárias e adequadas, registra-se durante a pandemia, manifestações discriminatórias veladas ou não envolvendo pacientes ou suspeitos e até mesmo comunidades inteiras. Todavia, esse aspecto encontra-se longe do nível em que ocorreu durante o início da epidemia da aids uma vez que ela arrolava outros atributos pessoais, provocando assim danos de grande magnitude à população afetada.
Um terceiro aspecto a ser registrado, esse de imensa repercussão enquanto violação dos direitos humanos fundamentais, é a discriminação econômica e esta podemos considerar sob diversas perspectivas:
- Direito ao acesso à informação cientificamente fundamentada;
- Direito às medidas de prevenção e proteção específica;
- Direito às medidas de proteção social das camadas mais desfavorecidas;
- Direito à vacina em tempo oportuno;
- Direito ao acesso à informação cientificamente fundamentada – O acesso à informação é aspecto que está diretamente vinculado ao nível educacional e socioeconômico. Considerando a realidade global, certamente as populações menos favorecidas economicamente, que representa a imensa maioria dos habitantes da terra, tiveram pouco ou nenhum acesso à informação que poderia lhe trazer benefícios na perspectiva de prevenção da infecção. A esse fato, acrescenta-se a existência de notícias e orientações não cientificamente recomendadas, que com o fácil acesso que se tem à internet, gerou sérios problemas à saúde pública; as chamadas “fakenews” e a adesão de segmentos populacionais a determinadas correntes ideológicas trouxeram em várias partes do mundo, a adoção de práticas inapropriadas ou até mesmo disseminadoras da doença. O negacionismo da ciência como referência para o controle da pandemia pode ter sido responsável por centenas de milhares de vidas ceifadas durante esse período.
- Direito às medidas de prevenção e proteção específica- O acesso à informação adequada, ainda que seja condição primeira para adoção de práticas apropriadas de prevenção e proteção, por si só não trazem a garantia de sua adoção e está, definitivamente, é função da capacidade econômica da sociedade como um todo e de cada cidadão em particular.
–Como adotar o uso adequado de máscaras, higienizadas e de material apropriado, se a prioridade é adquirir o pão para si e a família?
–Como incorporar medidas de afastamento social e isolamento, se a cada dia é obrigado a utilizar transporte coletivo, precário e inadequado, além de superlotado?
Como pôr em prática medidas protetivas em um domicílio sem condições sanitárias apropriadas no que se refere à aeração, iluminação e espaço suficiente para os que nele habitam?
Como implementar a recomendação de “lavar as mãos com água e sabão periodicamente” se no domicílio o abastecimento de água potável inexiste ou ocorre precariamente?
- Direito às medidas de proteção social das camadas mais desfavorecidas– Dada a característica da pandemia, uma das medidas essenciais para sua contenção foi a interrupção das atividades do comercio, indústria, serviços etc. mantendo-se em funcionamento apenas aqueles essenciais. Isso implicou perdas econômicas de grande monta e repercussões imediatas e diretas na manutenção do emprego e existência do próprio empregador. A adoção de medidas de proteção social de extrema relevância, adotadas pela grande maioria dos países ricos, ocorreu de modo precário e insuficiente nos países em desenvolvimento ou até mesmo foram inexistentes em grande parte deles, o que agrava a violação de direitos já precarizados e muitas vezes inexistentes.
- Direito à vacina em tempo oportuno – Sem dúvida a violação desse direito é flagrante agressão ao direito à saúde e à vida. Há um grande abismo entre os países desenvolvidos e os demais quanto o acesso à vacina contra a Covid; A inequidade atinge níveis de grave violação dos direitos humanos à medida que há países que adquiriram um quantitativo de vacinas muito superior à sua necessidade. Considerando que a produção mundial vem ocorrendo aquém das necessidades para estabelecer a curto/médio prazo a cobertura vacinal em níveis que permitam, junto com outras medidas, promover o controle da pandemia, faz-se necessário a urgente realocação dos excedentes observados em alguns países com vistas a minimizar o abismo existente; a esse ato solidário há de se ampliar a doação, por aquisição junto aos fabricantes, àqueles que não dispõem de capacidade econômica para tal.
Fica claro portanto, que a pandemia da covid agravou de modo abrupto e profundo a já existente e crônica violação dos direitos humanos da populações pobres e relegadas às adversidades do dia-a-dia, a lutar por sua sobrevivência.
* Pedro Chequer é médico epidemiologista e ex-diretor do antigo Programa Nacional de Aids.
** Artigo publicado originalmente na revista da Ilapic. Confira aqui.