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Em um de seus mais emblemáticos ensaios, aids e suas metáforas, a escritora Susan Sontag lista uma série de estigmas associados ao HIV. Para a estadunidense, cada doença carrega uma espécie de rótulo social e a aids levava a marca da promiscuidade, da culpa e do corpo à beira da morte.

Escrito em 1988, sete anos depois da descoberta do vírus da imunodeficiência adquirida, o texto ainda é atual. Mas não deveria.

Quarenta anos de avanços nos separam do tempo em que o HIV foi catalogado. E hoje os infectados que seguem à risca os tratamentos oferecidos pelo SUS (Sistema Único de Saúde) podem viver muitos anos e com qualidade de vida.

O problema é que nem todo mundo sabe disso. Presas a um imaginário que não corresponde à realidade, até mesmo pessoas diagnosticadas com o vírus deixam de tomar remédio por receio de alguém ver a embalagem ou se tornar um pária de uma sociedade preconceituosa. Quem nota isso é João Geraldo Netto, 39, ativista e estrategista digital.

Moderador de um grupo fechado no Facebook que reúne milhares de pessoas para debater o assunto e enfrentar velhos tabu, João que vive há 13 anos com HIV, também percebe que muita gente nem se dispõe a fazer o exame, gratuito na rede pública.

Dados oficiais ressaltam a incidência desses padrões. Segundo o Ministério da Saúde, a média de diagnóstico tardio no Brasil foi de 27% em 2020. A população com 50 anos ou mais superou o índice geral, chegando a 45%. Tudo seria mais fácil se as pessoas soubessem a longa vida que espera os que começam a se tratar logo cedo.

João Geraldo Netto com seus dois pets de estimação - Arquivo pessoal - Arquivo pessoalProva viva da ciência

Netto nunca vai se esquecer do dia em que conheceu a cientista Françoise Barré-Sinoussi, aclamada com o Nobel de Medicina em 1981 pela descoberta do HIV. “Estava em um congresso sobre Aids em Amsterdã e quase não acreditei ao vê-la ali, totalmente acessível”, lembra. “É claro que pedi uma foto”, sorri emocionado durante uma chamada de vídeo.

Desde 2008, quando foi diagnosticado com o vírus, seus heróis estão na ciência. É fácil entender a razão. Se hoje ele tem uma boa vida, é graças a pesquisadores que ainda se dedicam a um dos maiores enigmas das últimas décadas.

Tomando diariamente dois comprimidos de manhã, ele não sofre efeitos colaterais. Seus tratamentos foram adaptados quatro vezes até chegar a uma combinação medicamentosa com efeitos positivos em seu organismo. O SUS oferece esse suporte.

Há oito anos, Netto chegou a um patamar conhecido como indetectável. Isso ocorre quando a quantidade do invasor no corpo é tão pequena que o exame de carga viral não consegue identificá-lo.

No Super Indetectável, seu canal no YouTube, com mais de 50 mil inscritos, o comunicador aborda essas questões com a propriedade de quem vivencia os avanços da ciência.

Os efeitos positivos dos coquetéis não demoram a vir. De acordo com Renata Teodoro, médica do HC-FMRP (Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto), seis meses de tratamento costumam bastar para que a carga viral se torne indetectável —no caso de Netto, foi metade disso.

Daí para frente, só é preciso seguir tomando os remédios para que os poucos vírus restantes, que ficam escondidos, em estado de latência, não se manifestem.”A pessoa com HIV pode viver como qualquer outra não infectada”, destaca a professora Lisandra Damasceno, da FAMED-UFC (Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará).

Com o acompanhamento adequado, o paciente pode até ter filhos e, se a carga viral for indetectável por no mínimo seis meses, não há mais transmissão sexual. Apenas a amamentação ainda não é possível.

Teodoro menciona que a medicação pode não funcionar em casos raros. Isso acontece quando o vírus já ganhou certa resistência ao remédio. Então, o médico que acompanha o caso se dedica a pensar conjuntos de pílulas que se adequem ao quadro.

Com uma rotina corrida, que reúne ativismo, exercícios físicos, uma carreira sólida e atenção a quem ama, Netto tem uma vida feliz. No topo da sua lista de afetos estão o pug Kaio, a yorkshire Alice e o namorado Gabriel Xandeco, estudante de medicina de 33 anos.

“Sempre tive namoros longos e meus companheiros foram compreensivos. Mas sei, por preconceitos que vejo, que minha realidade, infelizmente, é uma exceção. É preciso derrubar essas barreiras”, comenta o ativista.

João Netto com o namorado Gabriel - Arquivo pessoal - Arquivo pessoalForça-tarefa

Mas como os remédios funcionam? E como a ciência chegou a fórmulas tão eficazes? Para entender essa história, é preciso saber como o vírus ataca.

Primeiro, ele se conecta aos linfócitos TCD4, células responsáveis pela nossa imunidade. Diferente das pessoas, o HIV não tem DNA, mas RNA como código genético. Essa é uma característica do retrovírus, categoria de vírus à qual o HIV pertence. E é por isso que ele não consegue se juntar ao genoma humano de imediato.

Mas, depois que o invasor é jogado para dentro da célula do infectado, uma enzima chamada transcriptase reversa presente nele converte seu RNA em DNA. Com esse disfarce, o vírus se integra ao corpo da vítima, ajudado por outra enzima, a integrase. Assim, produz vários RNA virais, que darão origem a proteínas do HIV.

Essas proteínas são cortadas com o apoio de uma terceira enzima, a protease. Elas são empacotadas e exportadas para fora da célula do paciente e assim dão sequência a um novo ciclo, conforme explica Damasceno.

Como você pode notar, o HIV tem uma estratégia de ataque minuciosa, usando a célula humana para fazer cópias de si mesmo. Foi por isso que os cientistas precisaram criar formas de barrá-lo em cada uma de suas etapas.

Hoje, já existem seis classes de antirretrovirais, que são combinadas em coquetéis de tratamento: duas capazes de inibir a transcriptase; uma que atua na protease; outra que impede a integrase; e os inibidores de entrada, que dificultam o ingresso do vírus na célula humana.

O governo federal oferece medicamentos desde 1996, mas, no início, beneficiava só quem tinha níveis baixos de imunidade. Em 2013, estendeu o benefício gratuito a todas as pessoas que vivem com HIV.

Juan Carlos Raxach, médico e psicólogo da Abia (Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids), acrescenta que o Estado disponibiliza não apenas remédios, mas também um acompanhamento integral. E mesmo quem se trata na rede particular só consegue retirar o medicamento no SUS.

Cura pode estar perto?

Os remédios desenvolvidos até agora têm sido eficazes para impedir a ação do vírus em diversas fases. Mas, então, por que a cura ainda não saiu?

Acontece que muitos desses invasores se escondem nas chamadas células-reservatório enquanto os antirretrovirais agem. E é difícil matá-los se estão ocultos.

A boa notícia é que há estudos em andamento pautados em um método chamado kick and kill (expulsar e matar). A ideia, como o próprio nome diz, é atrair os vírus em estado de latência para, enfim, atacá-los.

Outro método ainda em fase de testes é o block and lock (bloquear e trancar). Nesse caso, a estratégia passa por manter o invasor no estado de latência e impedir sua replicação mesmo após a interrupção dos medicamentos. Se esses estudos vingarem, será o coroamento de uma longa história de luta.

“Os avanços até aqui foram impressionantes e transformaram a infecção em uma doença crônica passível de manejo. Mas, sem dúvida, nosso grande sonho é testemunhar a eliminação completa do vírus. Só o investimento contínuo em pesquisas nos proporcionará essa conquista”, conclui Teodoro.

Fonte: UOL