Piper, uma garota transgênero de 17 anos, diz saber que tem sorte. Ela vive no subúrbio de Atlanta com uma família que a apoia e duas lagartixas-leopardo de estimação, Saturno e Juno. A Queer Med, uma clínica particular especializada em transição de gênero, fica perto. Lá, ela começou, há dois anos, um tratamento hormonal, depois de cinco meses de espera, um tempo curto quando comparado à média. Os tratamentos precipitaram uma mudança monumental na percepção de Piper sobre ela mesma.

“Estou mais confiante em meu próprio corpo”, disse Piper, identificada apenas pelo primeiro nome a pedido da família para proteger sua privacidade.

As coisas ainda não estão perfeitas. Piper ainda vai a um pediatra regularmente e os funcionários do consultório ainda usam ocasionalmente os pronomes errados ao se referirem a ela, ou a chamam pelo nome antigo. O plano de saúde da família também não é aceito na Queer Med, então eles precisam pagar cada visita — cerca de US$ 150, além das taxas dos laboratórios.

E o medo de seu atendimento ficar indisponível é constante, já que a Geórgia é um dos 20 estados americanos que apresentou, neste ano, projetos de lei para proibir ou restringir tratamentos de transição de gênero para menores de idade. Os planos de Piper são deixar o Sul depois do ensino médio, por preocupação com a sua saúde e segurança. Mas poderia ser muito pior, ela sabe.

“Eu sou tão sortuda. Muitas pessoas nem têm a chance.”

Dificuldade no acesso

Muitos obstáculos impedem que jovens transgêneros consigam o atendimento médico de que precisam, aponta estudo recente publicado na revista científica JAMA Pediatrics. Eles incluem estigma e discriminação por parte do sistema de saúde, assim como obstáculos legais, econômicos e sociais para obter o atendimento de transição de gênero.

Um estudo de 2019 do Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC) estimou que 1,8% dos estudantes de ensino médio nos EUA se identificam como transgêneros.

O artigo publicado no JAMA é a primeira revisão de estudos qualitativos sobre as experiências de jovens transgêneros em obter acesso aatendimento médico. Ele envolveu 91 estudos de 17 países ao longo de décadas, e incluiu jovens trans e não binários de 9 a 24 anos.

“Há atualmente uma desconexão enorme entre os prestadores de serviços de saúde e a juventude trans”, disse Lauren Chong, pediatra trainee na Rede de Hospitais Infantis de Sydney, na Austrália, e uma das autoras do estudo.

“As descobertas não foram nenhuma surpresa. É uma evidência poderosa de que as coisas precisam mudar”, defendeu a estudante de pós-graduação que pesquisa saúde mental de pessoas transgênero na divisão de psiquiatria da University College de Londres, no Reino Unido, e que não estava envolvida no artigo, Talen Wright.

Como é o atendimento

As maiores associações médicas, incluindo a Associação Médica Americana e a Academia Americana de Pediatras, têm endossado o tratamento de transição de gênero para adolescentes. Porém, as diretrizes médicas recomendam que crianças e adolescentes com menos de 18 anos não passem por cirurgias de redesignação sexual.

Mas o tratamento segue controverso para alguns prestadores de serviços de saúde, legisladores e pais, especialmente porque o tema envolve adolescentes. Bloqueadores de puberdade e terapias hormonais, os dois tratamentos de transição de gênero oferecidos a menores de idade, são mais efetivos se administrados quando a puberdade começa, por volta dos 8 aos 14 anos, o que é antes da idade de consentimento médico independente na maioria dos estados americanos.

Não existe um conjunto de regras único que dita quando e como adolescentes transgêneros devem receber o tratamento. Mas clínicos geralmente conduzem uma série de avaliações da saúde mental do paciente para compreender o entendimento do adolescente sobre ele mesmo e confirmar que o tratamento faz sentido.

“É para assegurar que pacientes tomem uma decisão completamente informada que proteja seu bem-estar futuro”, explica Lauren Chong.

Endocrinologista pediátrica no Hospital Infantil do Arkansas, nos EUA, e que não estava envolvida com a pesquisa, Michele Hutchison acrescenta a maioria de seus pacientes estão convictos de suas decisões:

A maioria de seus pacientes jovens estão convictos de suas decisões, diz ela: “No momento em que essas crianças me procuram, elas já sabem há muito tempo.”

Outras barreiras

Mas alguns pacientes jovens que participaram da revisão publicada no JAMA criticaram o que viram como medidas de “controle” nas avaliações. Alguns disseram sentir a necessidade de ter que provar que eram “trans o suficiente” para conseguir a aprovação, e outros expressaram frustração quando um dos pais não aprovou a terapia hormonal, bloqueando assim o seu acesso aos cuidados.

“Temos de ser muito atenciosos sobre as barreiras estruturais que estamos nós mesmos criando como prestadores de serviço médico. A maioria das crianças que atendo já superaram muitos desafios”, disse Gina Sequeira, codiretora da Clínica de Gênero do Hospital Infantil de Seattle, nos EUA, e que também não estava envolvida na pesquisa.

Pacientes transgêneros também enfrentam barreiras mais amplas aos cuidados de saúde, descobriu o estudo. As seguradoras de saúde provaram ser um problema comum e espinhoso; algumas famílias tinham dificuldades para comprar os remédios, e outras tiveram dificuldade em encontrar um prestador de serviço de saúde que aceitasse pessoas trans na rede. E aquelas que não tinham seguro tiveram de enfrentar custos mais altos.

Há também listas de espera, frequentemente de muitos meses, para conseguir marcar uma consulta.

“Nós estamos fazendo tudo que podemos para conseguir acolher essas crianças”, disse.

Para um jovem transgênero, apenas a ideia de entrar em uma clínica pode ser angustiante. Uma pessoa de 14 anos que participou da revisão disse que ficou “petrificada” ao entrar em lugares por medo de que sua identidade de gênero fosse ridicularizada ou ignorada. Outra disse que médicos encobriram sua identidade, dizendo que era “só uma fase”.

Hayden Wolff, que se formou na Universidade Tufts, em Massachusetts, em 2021, começou sua transição aos 18 anos. Ele lembra uma visita à clínica de sua escola onde seus dados no sistema estavam desatualizados.

“Lá estava eu, com uma febre alta, tentando conseguir atendimento, e sou tratado por outro gênero que não o meu na frente de todos da minha classe”, contou.

Os autores da revisão também perceberam que mais pesquisas são necessárias sobre os efeitos a longo prazo dos tratamentos de transição de gênero. Quando Hayden Wolff se consultou em Boston, ele foi orientado a suspender os hormônios urgentemente se estivesse preocupado com fertilidade. Médicos na Califórnia haviam dito a ele para não se preocupar, ainda que não tivessem certeza sobre os efeitos a longo prazo.

“Você precisa tomar decisões mesmo sem muita informação ou dados”, diz ele.

Wolff decidiu, então, congelar seus óvulos. O médico que o atendeu em Boston nunca havia cuidado de um paciente transgênero antes, e fez com que Hayden se sentisse como uma “espécime trans”, contou. Os enfermeiros na clínica faziam perguntas invasivas que não eram relacionadas ao procedimento de congelamento dos óvulos.

“Enfermeiros do laboratório me perguntavam se eu iria colocar um pênis depois daquilo, o que não é da conta deles. Se você é uma criança, não sente que tem o poder de dizer a alguém: Você está me deixando desconfortável”, disse Hayden.

Mudanças no atendimento

Os médicos disseram que não demoraria muito para começar a melhorar a experiência de cuidados para jovens transgêneros. Por exemplo, pacientes devem ter permissão para listar seu próprio nome e sexo antes de consultar um médico.

“Isso me atingiu muito como uma pessoa trans que recebeu cuidados médicos, esperando que eles chamassem o meu nome errado ou esperando que me tratassem como ‘senhor'”, disse Baer Karrington, residente de pediatria no Hospital Infantil de Seattle.

Na sala de exames, Lauren Chong conta, médicos e atendentes devem usar terminologias de gênero neutras e evitar termos como “ovários” e “úteros”: “Você pode simplesmente dizer órgãos reprodutivos”, explica.

Gina Sequeira percebeu que jovens transgênero não brancos, assim como os de áreas rurais, são desproporcionalmente sub-representados em clínicas de gênero pediátricas.

“O futuro desse trabalho é torná-lo acessível à juventude que não estamos incluindo no momento”, acrescenta.

A telemedicina poderia ajudar a preencher essa lacuna, observou ela, e os médicos de todas as áreas poderiam ser mais bem educados sobre como cuidar de pacientes que são transgêneros. Baer Karrington conta que, durante o treinamento pediátrico, os médicos aprenderam sobre os cuidados de saúde para transgêneros apenas no setor de adolescentes, o que não abordava crianças transgêneros mais jovens sendo tratadas em outras partes do hospital.

Adolescentes transgêneros e médicos ambos expressaram o desejo de ver mais prestadores de serviço médico trans, que possam compartilhar experiências de vida com seus pacientes mais jovens. Baer Karrington, que é a primeira pessoa transgênero residente em seu programa, disse que é possível contar o número de pediatras trans que conhece em ambas as mãos.

Em Atlanta, no Queer Med, Piper é atendida por uma pessoa transgênero, o que ela achou reconfortante: “Ela sabe pelo que estou passando e pode atestar que as coisas melhoram”, contou.

Enquanto Piper espera que mais pessoas transgêneros se tornem médicas, ela quer ser uma zoóloga, inspirada por suas lagartixas. “É a minha vocação”, disse ela, “eu sei disso há muito tempo.”

Fonte: The New York Times / Tradução: O Globo