Maria Elias Silveira, sócia-fundadora do coletivo Coisa de Puta + Foto: Arquivo pessoal

Nas proximidades da Praça da República, pelas ruas que compõem a conhecida zona do meretrício de Belém, algumas prostitutas batem ponto em horários alternativos diante do toque de recolher no estado e do lockdown em vigor desde segunda-feira (15) na capital paraense e em outras quatro cidades da Região Metropolitana. Com bares e casas noturnas fechados, a procura por programas, que já estava reduzida, despencou. Um grupo de profissionais do sexo, no entanto, formou uma rede de apoio para migrar os encontros presenciais para o virtual.

Sob liderança do coletivo “Coisa de Puta +”, prostitutas compartilham celulares e notebooks para realizar programas online. A iniciativa promove treinamentos sobre como se comportar perante a tela e o que devem vestir – ou não. O intuito é se adaptar às novas exigências dos clientes em meio à falta de contato.

Embora o movimento tenha começado no início da pandemia, quando o estado impôs medidas de contenção à Covid-19 no ano passado, o modelo se tornou ainda mais necessário com o recrudescimento de casos e mortes em decorrência da doença em todo o país, que vive sua fase mais crítica. No Pará, foram contabilizados mais de 390 mil infectados e 9,6 mil óbitos, segundo boletim divulgado pela secretaria estadual de saúde (Sespa) na quarta-feira (17).

Desde março de 2020, boa parte das prostitutas passou a carregar em suas bolsas não só preservativos e brinquedos sexuais, mas também álcool em gel e máscaras. Sem beijos e abraços, reformularam os programas presenciais, ainda que especialistas apontem que as chances de contágio existem mesmo com o contato extinto. Para aquelas de idade mais avançada ou portadoras de comorbidades seria ainda mais arriscado. Até o momento, ao menos 10 profissionais do sexo morreram por Covid-19 em Belém, segundo relatos da própria categoria.

“Além de menos contatos, beijos e abraços, a gente começou a ter posicionamentos sobre as posições sexuais, passamos a nos virar de costas. A gente falava que tinha a linha de frente da pandemia, mas estava ganhando nosso dinheiro com essa ‘guarda de costas’, não falando muito”, disse Maria Elias Silveira, sócia-fundadora do coletivo Coisa de Puta +. “Quando percebemos que algumas colegas tinham dificuldade de trabalhar presencialmente em virtude da idade, do deslocamento, a gente começou a migrar para o trabalho sexual online”.

Os programas então passaram a ser feitos por chamadas de vídeo no WhatsApp ou em salas virtuais, onde o cliente pode ver todas as profissionais e escolher a que mais lhe agrada. Como nem todas dispunham de aparelhos com câmeras de boa resolução ou acesso à internet, o coletivo conseguiu cinco aparelhos e um notebook para dividir entre elas. A organização conta com cerca de 150 prostitutas cadastradas, mas 22 participam efetivamente de suas ações.

A nova modalidade ajudou que trabalhadoras sexuais pagassem suas contas e não passassem fome, apesar de o faturamento ter caído significativamente e muitas não terem recebido o auxílio emergencial do governo. Segundo Silveira, que exerce a profissão há 25 anos, em dias movimentados algumas chegavam a embolsar mais de R$ 2 mil. Agora, a média gira em torno de R$ 200 a R$ 300, levando em conta que o preço do programa caiu mais da metade por ser a distância.

“Os programas virtuais foram o que me fizeram poder custear as minhas necessidades, como alimentação, até em virtude da minha idade. Tem pessoas que necessitam. Hoje sei que é necessário fazer trabalho sexual, mas também é preciso adotar os protocolos de proteção. Querendo ou não, temos que fazer um ou outro programa presencial. Não como antes, mas ainda existe essa necessidade”, disse a profissional do sexo Cris Flor, de 55 anos. “Não é do mesmo jeito, corpo a corpo, mas é um jeito digno de ganhar dinheiro e garantir meu sustento”, emendou.

O coletivo recebeu orientação da Articulação Nacional de Profissionais do Sexo para aprimorar os programas virtuais. Também começou a ensinar às mulheres como deveriam agir na nova situação. Entre a clientela, há quem busque prostitutas que conheçam ao menos o básico de outro idioma e saibam conversar.

“A gente presta atenção em que fantasia o cliente queria ter, e começamos a fazer essa reflexão do que íamos falar, vestir, usar. A imaginação sobre a mulher do Norte é de traços indígenas, mas a gente já mostra que não, que somos diversas. Eu, por exemplo, sou como uma sereia (risos)”, brinca Silveira. “Ninguém vai querer fazer programa com alguém que só apareça na câmera, fale ‘oi’ e mostre seu corpo, mas com uma garota que tem boa conversa, conheça homens de outros países e até fala outra língua”.

Apesar deste mercado emergente, existem as que cumprem jornada dupla e seguem nas ruas da chamada zona, também apelidada de Quadrilátero do Amor, em busca de uma renda melhor. Como a maioria não tem outro emprego, em alguns casos, apelam aos eventos clandestinos.

“Fecham os locais mais visíveis, mas ficam os clandestinos. Sempre vai ter um lugar para a pessoa marcar, isso é inevitável”, conta Silveira. “A pessoa aguenta até segurar a fome, mas não aguenta ficar sem trepar”.

Prestes a completar três anos, o coletivo Coisa de Puta + sobrevive graças a doações de prostitutas e a uma parceria com o Grupo de Apoio e Solidariedade (GAS), que subsidia desde o espaço físico a insumos de prevenção a doenças sexualmente transmissíveis. A organização tem um histórico de atuação relacionada a portadoras do vírus da Aids no Pará.

Esse amparo às mulheres com HIV foi um dos fatores que motivou o Fundo Positivo, uma organização que financia há seis anos diversas organizações sem fins lucrativos espalhadas pelo Brasil, a selecionar o coletivo como um dos beneficiários de um apoio emergencial ofertado durante a pandemia. Cada uma das 20 ONGs escolhidas receberá R$ 40 mil.

“A pandemia expôs ainda mais a vulnerabilidade de muitos grupos. Muitas organizações iam rever a continuidade das suas atividades. E boa parte leva serviços para moradores de comunidades, população em situação de rua, pessoas que convivem com HIV/aids. Por isso, essa ajuda emergencial se faz tão oportuna”, disse Harley Henriques, coordenador-geral do Fundo Positivo.

Fonte: Revista Época