Diante da pandemia causada pelo novo coronavírus (Sars-CoV-2), pesquisadores de todo o mundo correm contra o tempo para responder com ciência de qualidade questões fundamentais sobre o tratamento e a prevenção para essa infecção.

Falando em prevenção, no último dia 26 de junho foi publicado na revista científica Annals of Internal Medicine um estudo espanhol que contribuiu na busca pela resposta de uma pergunta que desde o início da pandemia intriga os infectologistas: o uso de medicamentos antirretrovirais usados normalmente para o HIV pode proteger uma pessoa da covid-19?

Para tentar chegar mais perto da resposta correta, os autores do estudo analisaram retrospectivamente os dados de 77.590 pessoas que viviam com HIV em uso contínuo de tratamento antirretroviral, atendidos em 60 hospitais espanhóis entre fevereiro e abril de 2020. O número corresponde a 65% do total de pessoas com HIV da Espanha.

Entre os dados avaliados estavam os medicamentos utilizados no esquema antirretroviral dos pacientes e a frequência dos seguintes desfechos: diagnóstico de covid-19, hospitalização e morte em decorrência dessa doença. Com essas informações, os pesquisadores estimaram o risco da ocorrência de cada um dos desfechos quando os diferentes esquemas antirretrovirais eram utilizados.

Os resultados do trabalho mostraram que, do total de participantes incluídos na análise, houve apenas 236 casos de covid-19 diagnosticados, dos quais 151 precisaram de internação e 20 faleceram da doença. Todos os desfechos foram mais frequentes entre participantes homens e com idade maior que 70 anos. Dos diferentes antirretrovirais usados, o uso da combinação tenofovir + entricitabina foi o associado a menores riscos de infecção e de desenvolvimento de formas graves da doença.

O risco estimado de ser diagnosticado com covid-19 entre os indivíduos que utilizavam esta combinação de antirretrovirais foi de 48% daquele observado na população geral espanhola, depois de devidamente excluídos os profissionais da saúde, por eles serem muito mais expostos e testados que o restante da população. Entre os usuários de tenofovir + entricitabina não foi registrado nenhuma morte por covid-19.

O estudo não encerra o assunto nem traz uma resposta definitiva para essa questão, mas, somado às evidências laboratoriais que sugerem que esses antirretrovirais podem ter alguma ação antiviral contra o Sars-CoV-2, a hipótese de que seu uso pode de alguma forma proteger contra a covid-19 e contra o desenvolvimento de formas mais graves dessa doença ganha mais força.

A combinação tenofovir + entricitabina atualmente é utilizada tanto no tratamento de pessoas que vivem com HIV quanto na Profilaxia Pré-Exposição (PrEP). Assim, ainda que no estudo espanhol só tenham sido incluídos participantes já vivendo com HIV, se o uso dos antirretrovirais foi de fato a causa da menor incidência observada, acredita-se que a PrEP poderia ser uma estratégia de prevenção contra o Sars-CoV-2. Entretanto, para se afirmar com certeza isso, mais estudos que já estão em andamento precisam ser concluídos.

No Brasil, além de poder ser comprada, a PrEP é disponibilizada gratuitamente pelo SUS (Sistema Único de Saúde) desde o início de 2018, depois que a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias ao SUS (CONITEC) considerou vantajoso para o país a incorporação direcionada para as populações sob maior vulnerabilidade à infecção por HIV (homens gays e bissexuais, pessoas transexuais, trabalhadores do sexo e integrantes de casais sorodiferentes).

No parecer da CONITEC, estava prevista a inclusão no acompanhamento da PrEP para 7.000 pessoas ao fim do primeiro ano da implementação, com a ampliação prevista para 33.800 ao longo de 5 anos.

Segundo dados do Ministério da Saúde, até maio de 2020 (2 anos e 4 meses depois da sua chegada ao SUS), a PrEP já tinha sido iniciada por 20.900 pessoas em todo país. Dispomos atualmente no Brasil de 196 serviços oferecendo esse atendimento, que podem ser encontrados no www.aids.gov.br/PrEP .

De acordo com o aumento da rede de atendimento de PrEP, espera-se que o acesso à estratégia de prevenção se torne cada vez mais facilitado. São Paulo foi o estado que mais conseguiu expandir sua rede e atende hoje 46% dos usuários de PrEP de todo o país, fato que tem sido apontado como uma das principais causas da redução da incidência de HIV observada na região nos últimos anos.

Já é esperado que durante a quarentena existam ainda mais barreiras para o acesso à PrEP pelo SUS e que haja abandono de parte dos usuários que já estavam vinculados a esse acompanhamento, uma vez que não se veem em risco de se infectarem com HIV durante o isolamento social.

Entretanto, a não interrupção da oferta de PrEP é essencial para a manutenção do seu impacto no controle regional da epidemia de HIV. Essa importância agora pode se tornar ainda maior, caso a ciência consiga provar que a PrEP pode também prevenir a covid-19.

Devemos lutar pela continuidade e expansão da PrEP no SUS. Ela pode ser mais fundamental do que imaginávamos para o Brasil.

Fonte: Viva Bem - Ricardo Vasconcelos