Estima-se que 58 milhões de pessoas no mundo estejam infectadas com hepatite C crônica e cerca de 1,5 milhão de novas infecções ocorram a cada ano, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS). No Brasil, dados do Ministério da Saúde indicam que aproximadamente meio milhão de pessoas ainda precise de diagnóstico e tratamento para a doença.

No intuito de enfrentar esse grave problema, o Brasil elaborou, em 2018, um Plano Nacional para Eliminação da Hepatite C até 2030. A expectativa é tratar 657 mil pessoas nos próximos anos, a partir da implementação de novas estratégias de testagem e tratamento de todos os pacientes diagnosticados. O Plano prevê que todos os pacientes diagnosticados com a doença serão atendidos, independentemente do grau de comprometimento do fígado. Porém, o maior desafio é realizar a busca das pessoas que, ainda que diagnosticadas, não estão em tratamento, e também daquelas que ainda não foram nem diagnosticadas.

Esse Plano é um desdobramento do esforço global de eliminação das hepatites virais, que confluiu na Estratégia Global da Hepatite Viral da OMS. O Plano incorporou algumas metas importantes da Estratégia Global, dentre elas ampliar a testagem, principalmente, em populações consideradas prioritárias, e estimular a busca ativa de casos diagnosticados e ainda não vinculados ao SUS para iniciar o tratamento imediato de novos e antigos pacientes.

Assim, uma das metas do Brasil é o tratamento de 50 mil pacientes por ano, até 2024. A partir de 2025, espera-se que pelo menos 32 mil novos tratamentos sejam realizados anualmente. Com esta estratégia em curso, almeja-se reduzir em 65% a mortalidade por hepatite C até 2030 no país. Na área de testagem, o objetivo é diagnosticar 40 mil pessoas por ano até 2030.

No entanto, dados de 2021 apresentam números muito distantes das expectativas estabelecidas pelas metas do Brasil. Em 2020, na comparação com 2019, houve uma diminuição anual de distribuição de testes rápidos de hepatite C de 42%. Sobre esse resultado já abaixo do ideal, ocorreu uma queda de 53% em 2021 na comparação com os dados de 2020. Como resultado da baixa distribuição de testes, o número de novos casos notificados de hepatite C diminuíram consideravelmente, chegando a mais de 50% em 2020, na comparação com 2019. Mesmo considerando o impacto da COVID-19, comprometendo os esforços do Ministério da Saúde, esses números apresentam uma piora considerável em relação há anos anteriores, demonstrando retrocessos nos resultados das políticas para hepatite C no Brasil e preocupação significativa na capacidade de alcançar as metas de eliminação da Hepatite C até 2030.

Segundo relatos de pessoas vivendo com hepatite C, a solicitação de exames diminuiu drasticamente em decorrência do temor da população em ir às Unidades Básicas de Saúde (UBS) e aos Centros de Testagem e Aconselhamento (CTAs), além, da diminuição na busca por atendimento primário de rotina, o que foi desencorajado pelas autoridades públicas de saúde visando evitar uma sobrecarga ainda maior sobre o SUS. Também, a falta de campanhas de testagem e esforço de busca ativa de pacientes levou a diminuição da distribuição de medicamentos e, por fim, perda da validade de medicamentos estocados pelo Ministério da Saúde. Em consequência, em 2021, o Brasil tratou menos de 6 mil pessoas, muito menos que as mais de 19 mil pessoas tratadas em 2020.

Ao todo, desde o início do Plano Nacional para Eliminação da Hepatite C até 2030, o Brasil só tratou 23% do número final previsto de 657 mil pacientes. Se continuarmos nesse ritmo, não chegaremos nem à metade da meta estabelecida. Para alcançar as metas de eliminação até 2030, é necessário um esforço crescente de ampliação da cobertura de testagem e tratamento para hepatite C. Entretanto, somado ao desafio sobre a busca desses pacientes para a efetivação desses diagnósticos e tratamentos, também existe uma barreira muito importante para eliminação da doença: os altos preços do tratamento.

Atualmente, a hepatite C é tratada pelos medicamentos Antivirais de Ação Direta (AADs), muito seguros e eficazes em comparação a tratamentos antigos, com menores efeitos colaterais e altas taxas de cura em um prazo de apenas 12 semanas. Porém, esses medicamentos têm sido ofertados a preços insustentáveis, quando não, inacessíveis. No Brasil, o valor do tratamento segue em aproximadamente 1.400 dólares por paciente. Os pregões mais recentes para a compra de medicamentos têm sido marcados pela ausência quase total de concorrência e pelo monopólio da empresa Gilead, que pratica preços cada vez mais elevados, inclusive acima do teto estabelecido pelo Ministério da Saúde nesses pregões. Entretanto, o Brasil poderia comprar versões genéricas mais baratas por aproximadamente 300 dólares por tratamento, se houvesse vontade política.

Desde que foram lançados os primeiros AADs em 2013, os preços se tornaram uma barreira, gerando situações de escassez e racionamento do tratamento em várias partes do mundo. O medicamento Sofosbuvir, da farmacêutica Gilead, foi lançado pelo preço de US$ 1.000 por pílula, US$ 84.000 o tratamento completo. No Brasil, a oferta deste medicamento, em combinação com o medicamento Daclatasvir, ficou restrita aos pacientes em estado mais grave até 2018. Médicos Sem Fronteiras (MSF), juntamente com outras organizações da sociedade civil brasileira tem atuado desde 2014 para tentar assegurar a oferta universal de tratamentos no Sistema Único de Saúde (SUS) e preços sustentáveis que permitam ao Brasil alcançar as metas de eliminação da doença.

Esses preços exorbitantes são possíveis por causa de regras de propriedade intelectual, como as patentes farmacêuticas, que permitem monopólios de 20 anos de exclusividade de comercialização de tecnologias de saúde essenciais por uma única empresa, bloqueando a concorrência e o acesso a versões genéricas. Patentes não deveriam ser um impedimento para todos os esforços feitos por países em desenvolvimento, como o Brasil, para oferecer às pessoas os tratamentos de que precisam para viver.

MSF apoiou a apresentação de argumentos técnicos junto ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) que demonstravam que a patente do medicamento Sofosbuvir no Brasil não cumpria exigências básicas e deveria ser rejeitada. Esse movimento foi importante para viabilizar, durante um período curto em 2018, a oferta de versões genéricas do medicamento e garantindo o tratamento para mais de 15 mil pessoas que aguardavam há mais de um ano na fila. No entanto, a empresa Gilead tem atuado para bloquear a oferta de genéricos do Sofosbuvir e de suas combinações. Por isso, MSF colaborou com organizações da sociedade civil para apresentar denúncia ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) contra a prática de preços abusivos pela Gilead. Entretanto, mais de dois anos após a denúncia, o órgão ainda não iniciou nenhuma investigação e segue coletando informações.

A manutenção e potencial aumento do abastecimento de AADs se configuram como um grande desafio para os serviços de saúde e uma barreira para a eliminação da hepatite C até 2030, levando-se em conta também a redução do alcance do diagnóstico e do tratamento durante 2020 e 2021, por conta da pandemia de Covid-19, o que tende a gerar um aumento da demanda nos próximos meses.

Dificuldades na oferta de diagnóstico e acompanhamento dos cuidados em hepatite C também podem constituir uma barreira para a eliminação da doença. Em geral, os fluxos são complexos e envolvem muitas etapas, tornando o processo caro e demandando um investimento intenso de recursos. Testes de laboratório para medir a carga viral da hepatite C – necessários para monitorar a efetividade do tratamento – são sofisticados e demandam laboratórios bem-equipados e profissionais qualificados. Testes mais simples, acessíveis e possíveis de serem usados em contextos de recursos limitados são necessários para permitir o acesso ao tratamento de hepatite C para todos os que precisam. Também, é importante trazer o cuidado da hepatite C para a atenção primária e descentralizá-lo para que enfermeiros possam assumir também parte do cuidado dos pacientes. Em vários países, MSF buscou demonstrar a viabilidade de modelos simplificados de atenção à hepatite C, que podem ser aplicados com base na simplificação do diagnóstico e do tratamento. Essas experiências têm sido compartilhadas com diversos atores no Brasil, inclusive com o poder público.

Em suma, o contexto da pandemia deixou mais evidente como o exercício abusivo de monopólios sobre bens de saúde comprometem respostas governamentais a crises sanitárias, e a hepatite C é um claro exemplo disso. Neste momento, é preciso que recuperemos ao menos uma parte do tempo perdido e aceleremos esforços para atender as metas de eliminação da doença. É necessário aumentar os diagnósticos, oferecendo cuidado e testagem na atenção básica. Um passo essencial é obter um acesso mais sustentável a tratamentos, com o fim de monopólios e aplicação abusiva de direitos de propriedade intelectual. Da mesma forma, é essencial que as informações para o público sobre o ritmo do combate à doença sejam mais transparentes, com a volta da divulgação regular do número de pacientes tratados e testes realizados. Isso abriria caminho para permitir um melhor acompanhamento e eventuais aprimoramentos nas ações do Plano de erradicação da doença até 2030.

Clara Alves é especialista da Unidade de Advocacy e Assuntos Humanitários de MSF-Brasil

Felipe Carvalho é Coordenador Regional da Campanha de Acesso de MSF

Francisco Viegas é Assessor de Política e Inovação em Saúde da Campanha de Acesso de MSF