A pandemia da Covid-19 está quase completando um ano e mudou a vida de todos, inclusive das pessoas que vivem com deficiências. O que mudou na vida delas? Esses e outros assuntos foram discutidos na live “Deficiência e Autonomia na Pandemia”, realizada na noite de terça-feira, 23.  E quem assumiu lugar de fala, como mediadora, foi a repórter da Agência Aids Jéssica Paula, deficiente desde os seis anos.

A condição de Jéssica surgiu devido à uma infecção na garganta. A bactéria migrou e se alojou na medula espinhal provocando uma mielite, que resultou na deficiência. “Aos poucos, na minha infância, fui me adaptando, tive que  reaprender a sentar, engatinhar, usar cadeira de rodas, até chegar nessas muletas que eu utilizo hoje pra andar o mundo. Já tive a oportunidade de conhecer mais de 30 países, sassaricando sozinha, eu e minhas muletas”, brincou a jornalista.

A convidada  Ivone de Oliveira, blogueira conhecida como a Gata de Rodas, contou que teve poliomielite aos seis meses de idade, tendo como sequela a incapacidade de andar, “o que não foi motivo para eu desistir dos meus objetivos e dos meus sonhos também”. Ela teve problemas de adaptação com a família, que não tinha nenhuma experiência em lidar com uma criança deficiente e ainda em uma época onde era comum a família esconder o deficiente. “Quando você é deficiente, também vem aquela questão: ‘a doença pega? É transmissível?’ Então, me esconderam muito tempo porque acharam que se meus irmãos casassem, eu poderia passar a doença para os filhos deles”. Isso fez com que ela começasse a orientar a família desde pequena de que ela era capaz de fazer tudo dentro das possibilidades dela. “Comecei minha militância em casa, fazendo com que meus pais me olhassem como uma pessoa sem deficiência.”  Teve que se colocar como mulher com deficiência desde cedo, bissexual, situação complicada para uma família nordestina, conservadora. Então, criou o blog “Gata de rodas” depois de passar quarenta anos sem contato com outras pessoas deficientes. E foi onde começou a ter identificação com essas pessoas.

Beto Volpe, ativista de São Vicente, tem 59 anos de idade e vive com o HIV há 31. Foi presidente da ONG Hipupiara por treze anos e enfrentou muitas dificuldades nesse período, desde a perda de muitos amigos até ver sua condição de saúde começar a decair. “Tive várias doenças oportunistas, dentre elas três neuro toxoplasmoses que paralisaram o lado direito do meu corpo.”  O problema de mobilidade começou em 1996 e, desde então, ele faz muita fisioterapia. No entanto, ele se considera uma pessoa privilegiada, porque sempre teve condições, renda, plano de saúde e apoio da família.

Afrodeficiente, assim se autodenomina Marcelo Zig, filósofo e escritor. “Isso surge depois de muitos anos sem compreender o meu local de fato, onde eu devia me posicionar, me encaixar, porque eu me direcionava aos movimentos negros e não tinha minha deficiência contemplada, assim como também ia aos movimentos PCD e não tinha minha negritude contemplada. Eu vivia com esse vazio, essa lacuna, até me reconhecer afrodeficiente e criar o Quilombo PCD, que é justamente um coletivo que trata e dá acolhimento e  impulsiona as pessoas pretas com deficiência nesse país.  Mas a gente não fica restrito a essas pessoas porque a gente entende que sozinhos a gente não vai dar cabo de uma problemática tão crítica e antiga no nosso país que são o racismo e o capacitismo juntos”, explicou. Zig se tornou deficiente aos 21 anos de idade, em um mergulho de uma ponte, quando teve a coluna lesionada.

Marcelo Rubens Paiva, jornalista, escritor e jornalista pontuou logo no início. “Nós não somos superação a exemplo de nada, nós estamos a favor da maré. De certa forma, somos até privilegiados em sobrevivermos a todas as dificuldades que as pessoas enfrentam nesse  país, que não é um país preparado para pessoas deficientes nem para as pessoas não deficientes”. Marcelo observou que as pessoas com deficiência estão sofrendo em dobro durante a pandemia, por não poder utilizar ferramentas que utilizam normalmente. “As pessoas com deficiência visual, por exemplo, como elas encostam a mão no elevador pra ler em braile? As com deficiência auditiva, como podem fazer leitura labial por trás da máscara? E quem tem mobilidade reduzida não pode apoiar as mãos em apoios como o corrimão.” Assim como Zig, Marcelo também lesionou a coluna após um mergulho. A mãe dele, na época, tinha cinquenta anos e era viúva de um desaparecido político e teve que lidar com todas as dificuldades de criar sozinha cinco filhos, um deles deficiente, e sem acesso aos bens deixados pelo marido.

A secretária municipal da Pessoa Deficiente da cidade de São Paulo, Silvia Grecco, não é portadora de nenhuma deficiência, mas tem um filho deficiente visual e autista. Silvia ganhou visibilidade quando foi flagrada pelas câmeras de televisão em um estádio narrando o jogo de futebol para o filho Nicolas. Algum tempo depois, recebeu o convite do prefeito Bruno Covas para assumir a secretaria. “Quando deu toda essa repercussão, fiquei muito preocupada porque a gente vê algumas pessoas idolatrando a mãe especial e não é isso. É mãe e a gente faz isso como uma coisa de rotina. Mas eu quis entender o por que de tudo isso e fui buscar. Aí entendi  o quanto a pessoa deficiente é invisível, que essa invisibilidade era muito grande. E já que me deram voz e vez, eu quis falar para o mundo que as pessoas deficientes existem, precisam ser amadas, respeitadas, incluídas, com oportunidade e nada de ter dó ou piedade, porque eles não precisam disso”, disse ela.

Sexualidade

Jéssica levantou a importância de falar sobre sexualidade e conta que alguns familiares mais distantes se preocupavam com a possibilidade de ela engravidar. Quando se descobriu lésbica, quando entendeu o que era isso, ela se perguntou: “além de deficiente eu vou ser lésbica?”

“Nós somos infantilizados o tempo inteiro, comecei a trabalhar com sexualidade no blog e mostrar para sociedade que  a pessoa com deficiência é criança, adolescente, se torna adulta e se torna idosa com deficiência”, ressaltou a Gata de Rodas. “Quando abri o leque de sair da caixinha do hetero e entrar para a camada LGBT, aí foi um choque.  Essa menina vai fazer o que com a cabeça desses deficientes? Muitas mães ficaram contra porque eu estava tirando os filhos da zona de conforto, não era para eles terem relações. Aí causei… Não basta ser deficiente e ainda bissexual. E minha última relação foi com uma travesti. Saí do anjo para o inferno”, relatou.

“Eu sou PVHAHSHCDUD13, o que significa pessoa vivendo com HIV/aids, homem que faz sexo com homens, com deficiência, usuário de drogas e 13 porque eu não sou lá muito bom das ideias. E na linguagem do preconceito eu sou aidético, viado, aleijado, drogado e meio esquisitão”, contou Beto Volpe. Ele diz que mexer em sexualidade é mexer em um vespeiro. “Eu nunca dei muita bola para preconceito. Eu sei que sou homossexual desde os seis anos de idade, sem ter logicamente a noção. Eu sempre fui muito bem resolvido com a minha sexualidade.”

Pandemia

Jéssica Paula quis saber sobre a questão da priorização da imunização das pessoas com deficiência contra a Covid-19 e o que a pandemia trouxe de importante para  a vida dos convidados.

A secretária Silvia Grecco disse que na verdade não devia se falar em prioridades, mas em vacinação para todos. “É difícil dar prioridade à prioridade. Você vai falar em volta às aulas sem vacinar os professores, os educadores? Vamos falar do deficiente visual, do cadeirante que não seja prioridade? É tão difícil escolhermos prioridades numa situação dessas. Na verdade, o que é ideal e deve ser encarado é vacinação para todos”.

“Você imagina uma pessoa militante, ativista, que coloca o corpo em exposição nos movimentos e ações LGBT, da pessoa com deficiência, onde existe muito afeto, aglomeração…Eu tive que me reinventar”, respondeu a Gata de Rodas. “Todos esses movimentos que eu fazia na rua, na externa, eu tive que fazer no virtual. Claro que deu mais visibilidade, porque na internet a gente tem mais acesso às pessoas”. Ivone saiu de casa apenas cinco vezes no ano que se passou. Por ter tido poliomielite, ela tem o pulmão atrofiado e teme se infectar com o coronavírus.

Beto Volpe disse que sua vida não mudou muito com a pandemia. “Eu já estava saindo muito pouco, então não senti muita diferença. A diferença que eu senti foi que eu perdi muita gente querida, como no início da pandemia da aids. Estamos perdendo gente de novo, numa intensidade muito grande. E outra, descobrir que pessoas que você ama muito nessa vida apoiam esse governo absurdo, essa nave louca que pegou o Brasil e está levando não sei pra que planeta e gerando alguns constrangimentos entre a gente. A gente que tem HIV já tem a morte fungando no cangote, que aliás é o que me faz ir pra frente. De repente, o mundo inteiro sentiu o bafo da morte no cangote.”

“O distanciamento social acabou por fazer as pessoas migrarem em definitivo para o ambiente virtual”, salientou Marcelo Zig. “Isso possibilitou um trânsito melhor das pessoas com deficiência. A gente pôde pautar nossas questões e ter um acesso maior. Esse foi um ponto positivo para as pessoas com deficiência das medidas adotadas para a prevenção da pandemia.”  Zig comentou que, em salas que ele tem participado de conversas virtuais,  muitas pessoas não sabiam da existência do movimento do qual ele faz parte. “Elas acham que as pessoas deficientes brotaram junto com a pandemia”, ironiza.

Marcelo Rubens Paiva relatou que já era mais caseiro, por causa da deficiência e da profissão. Ele criou, com parceiros, um site de cursos diversos que está fazendo muito sucesso para pessoas que têm procurado se reciclar. “Uma coisa legal foi participar da educação dos filhos de uma forma mais atuante do que antes. Com a pandemia a gente aprendeu também a educar, foi muito interessante esta ligação para pais e filhos. Mas estou sentindo muita falta de viajar, falar com os leitores, fazer palestras, ir no botequim da esquina”, concluiu.

 

Redação da Agência de Notícias da Aids

 

Dica de Entrevista

 

Secretaria da Pessoa Deficiente – SP

E-mail: imprensasmped@prefeitura.sp.gov.br

Gata de Rodas

E-mail: gataderodas@outlook.com

Marcelo Zig

E-mail: afrodeficiente@gmail.com

Marcelo Rubens Paiva

E-mail: paivinha@gmail.com