Solidariedade, acolhimento, apoio, iniciativa, direitos humanos, saúde para todos e luta. Não faltam sinônimos para definir a atuação da AHF (Aids Healthcare Foundation) no mundo durante a pandemia do novo coronavírus. No Brasil, desde o começo da pandemia, a organização já apoiou dezenas de organizações que trabalham com a temática do HIV/aids para acolher e distribuir comida para centenas de pessoas em situação de extrema vulnerabilidade social, como as travestis e transexuais, população LGBTIA+, profissionais do sexo e outros. “A AHF investiu 3 milhões de dólares em ações durante a covid, o Brasil recebeu 10% deste dinheiro. Fizemos um trabalho intenso por aqui, ajudamos na implantação de projetos em todas as regiões. A questão é séria, as pessoas não têm comida na mesa, não tem gás para cozinhar. Existe a falta de trabalho, falta de dinheiro para transporte e comida. Há um número significativo de desempregados, gente sem renda mesmo”, disse o diretor da AHF no Brasil, Beto de Jesus. Ele, Dra. Adele Benzaken, diretora médica sênior global da AHF e Guillermina Analiz, diretora de Advocacy da America Latina e Caribe da AHF, participaram na noite dessa terça-feira (15) da Live “Conheça mais sobre as realizações da AHF”, realizada pela Agência Aids.

“A covid veio para atrapalhar as nossas metas da luta contra aids, em outubro vamos fazer uma reunião para entender o quanto a pandemia vai impactar os países para alcançarem as metas de 2025 e 2030. Este tema tem sido bastante explorado cientificamente, temos que puxar essa discussão para o Brasil. Tenho falado muito na reconstrução do programa para minimizar o impacto da covid”, disse Dra. Adele, que já esteve à frente do Departamento de IST, Aids e Hepatites Virais no Brasil.

A jornalista Roseli Tardelli, mediadora da live e diretora desta Agência, quis saber do Beto de Jesus o que é preciso fazer para segurar as novas infeções por HIV e ressignificar tudo o que já foi feito nestes 40 anos de história de aids.

“Não temos levado em consideração o aprendizado temos com a questão do HIV para covid. Tem muita lição aprendida que a gente deveria desenvolver. Hoje, estamos discutindo uma questão muito importante que são os jovens como vetores, a gente iniciou a pandemia da covid falando em grupo de risco, jovem não é grupo de risco. É um equívoco, estamos falando de pessoas mais vulneráveis. Quando eu estabeleço um grupo de risco,  tiro as pessoas que não fazem parte deste grupo. Aconteceu a mesma coisa com o HIV quando disseram que era uma questão de gays. Não custaria nada falar de populações mais vulnerabilizadas por questões de comorbidades. Em relação ao HIV, a gente está muito engessado. O Brasil não entrega medicação por correio, por exemplo. Um monte de gente ficou sem medicação por uma série de fatores, tínhamos que transformar essas dificuldades em oportunidades. Estamos discutindo na Clínica do Homem, no Recife, de entregarmos os medicamentos para as pessoas que acusam positivo no seu teste. A ideia é encaminharmos a pessoa prontinha para a vinculação, já com CD4, medicação, carga viral. Desa forma não vai ter hiato e ela vai ser atendida o mais rápido possível”, exemplificou.

Outro ponto apontado por Beto foi sobre prevenção. “A gente precisa ressignificar muito e rediscutir a questão da prevenção, somos antiquados, continuamos fazendo coisas que fazíamos há muitos anos. Temos uma limitação, o nosso programa é ligado a política estatal, temos uma agenda de valores que fala contra gays, profissionais do sexo, pessoas que usam drogas. Não tem política pública para essas pessoas. Hoje, o grande desafio é romper com essa agenda de costumes.”

Grupos de apoio digital

Dra. Adele concordou que o Brasil precisa avançar na questão da entrega da medicação por correios ou domiciliar. “A telemedicina foi aprovada pelo Conselho Federal de Medicina apenas agora com a chegada da covid. O WhatsApp está aí, sabemos que grupos de apoio podem ser feitos por essa plataforma digital. A covid tem nos mostrado alguns aprendizados, o Brasil precisa se concentrar nesta modernização. A AHF está em 45 países, tem quase 7 mil funcionários espalhados no mundo, 660 unidades de saúde apoiadas pela instituição. Vivenciei na África uma coisa importantíssima, a pessoa vai no serviço, pega o remédio para seis meses, se ela estiver indetectável, sem queixa, não tem motivos para passar por uma consulta clinica outra vez. A consulta só acontece de ano em ano. Por que não avançamos nisso por aqui? Tem uma demanda reprimida enorme, outras coisas para serem feitas na questão da testagem e nós ficamos perdendo o tempo da equipe de saúde atendendo pessoas estáveis, que não precisariam estar lá”, observou.

América Latina

A representante da AHF na América Latina e Caribe disse que um dos maiores desafios na região é construir uma resposta comum dos países e unificar ações. “Um dos principais problemas da região em relação ao HIV/aids é a discriminação e o estigma, e isso gera barreiras para um diagnóstico oportuno, vinculação e adesão ao tratamento. Em relação a covid, tem uma situação muito particular no Caribe que está tendo novos casos. Falta respostas do governos e equipamentos individuais de proteção para os trabalhadores da saúde. Há um problema gigante com a questão da comunicação contraditória. A AHF tem feito um chamado a todos os governos para unificar critérios baseados em evidências cientificas, a partir do momento em que se abre as fronteiras entre os países da América Latina é importante ter medidas semelhantes para minimizar os efeitos da covid.”

Ensinamentos da covid

Roseli quis saber se os especialistas consideram revolucionário conversar com o médico por telemedicina.

“O cargo que eu ocupo na AHF engoba não só fazer recomendações médicas e protocolos, a gente faz uma análise dos dados globais, dos 45 países. Posso afirmar que o impactado da covid nos trouxe redução de testagem, tivemos uma redução enorme de novos casos de HIV sendo atendido e dos números de cuidado. Isso é um impacto estrondoso para um programa global. A AHF é estruturada por pessoas como o Beto, que é responsável pelo país, mas ele está dentro da América Latina. Então tem uma diretora para América Latina que a gente chama de birô, atuamos diretamente por todos os birôs do mundo inteiro: Ásia, América Latina e Caribe, África, Europa e Índia. São inúmeros os exemplos de trabalhar com grupos de apoio, tem um grupo na Ucrânia que reúne pessoas em fase inicial de tratamento, eles debatem a questão da adesão. Tem uma outra iniciativa na África que reúne garotas para debater assuntos relacionados ao HIV/aids virtualmente”, contou Adele.

A médica disse ainda que a orientação da AHF no mundo é para “não parar nenhuma atividade, temos os instrumentos, o México mostrou que é possível manter a clínica de ISTs aberta, fazendo consultas por WhatsApp. É o que estamos fazendo também em Recife. Tem atendimento presencial e online. São exemplo que considero que deveriam permanecer no período pós-pandemia, eles incrementam o programa. São ações de prevenção e acolhimento que continuam acontecendo.”

Gillermina acrescentou que a ONG está focada em fortalecer todas as clinicas e hospitais parceiras. “A saúde é um direito das pessoas e tem de ser respeitada.”

No Brasil, Beto destacou que a AHF Brasil estabeleceu como prioridade em seu plano de advocacy regional para covid-19 apoiar um projeto de lei 1624, que está no congresso e ainda não foi para votação, que trabalha com a questão de vacina e medicamentos para todos. “Com este projeto a gente consegue evitar todo monopólio dos grandes laboratórios. Da forma como está, se não tivermos isso como política pública, teremos a vacina e não teremos agulha para vacinar todo mundo. Tivemos um corte de 35 bilhões de dólares para o orçamento da saúde em 2021, justamente no ano em que não temos ainda a resposta a covid. Isso vai impactar diretamente a diversas ações da saúde, é extremamente importante que a gente tenha esse olhar em relação ao que está acontecendo. Tudo isso que estamos fazendo deve ser baseado nos critérios de direitos humanos.”

Solidariedade

Muitas pessoas que trabalham contra aids há décadas consideram que a covid trouxe de volta ações solidárias. Essa também é a opinião da Dra. Adele. “Esse movimento solidário das pessoas foi importantíssimo. A AHF gastou até agosto do mundo mais de 3.1 milhões de dólares em comida, principalmente para população mais vulnerável, trabalhadoras do sexo, pessoas trans e pessoas vivendo com HIV. Foram mais de 325 locais no mundo distribuindo e fazendo as doações. Essa solidariedade foi fundamental e tem de ficar, os impactos econômicos da covid vão continuar, não serão 300 reais por família que vai encher a barriga das pessoas, é preciso que essas ações se mantenham. O mundo não vai se reorganizar de uma hora para outra, a fome veio e vai ficar.”

Novas tecnologias

A AHF também está se reinventando no Brasil, a Clínica do Homem no Recife, por exemplo, se manteve aberta o tempo inteiro, principalmente em tempos de covid. “Introduzimos a telemedicina e queremos manter no pós-epidemia. A gente faz triagem pelo telefone e Whatsapp, tem gente que precisa de atendimento urgente. É claro que temos atendimento presencial também, mantendo as barreiras sanitárias. Ninguém na clínica ficou doente. É possível fazer a readequação de fluxos.

ONGs que receberam apoio da AHF

Desde maio, a AHF Brasil tem apoiado algumas ONGs na distribuição de cestas básicas e itens de limpeza e higiene. Este é o caso do Grupo Pela Vidda Rio de Janeiro, que acolhe pessoas com HIV/aids nas comunidades da cidade. “Essa iniciativa de AHF foi fundamental, principalmente no momento mais crítico da pandemia, nos meses de maio e junho. Percebemos a vulnerabilidade na nossa porta. Não tínhamos objetivo de atuar neste período, a maior parte da nossa equipe são pessoas vivendo com HIV, a gente queria preservar a saúde e seguir os protocolos. Decidimos por fazer este trabalho de solidariedade. Era possível ver esperança nos olhos das pessoas que receberão a comida. Atendemos famílias que não tinham nada, nem mesmo auxílio emergencial. A covid é uma guerra, devasta e derruba os territórios. Agora, está um pouco mais razoável. Sem essa ajuda, as pessoas que a gente atendeu poderiam ter passado fome ou não estar mais aqui”, descreveu Márcio Villard, um dos fundadores da instituição.

Em São Paulo, uma das organizações apoiadas foi o Instituto Cultural Barong, liderado pela ativista Marta Mc Britton. “Somos parceiros da AHF há um longo tempo. A AHF não só manteve o apoio, como nos ajudou. Literalmente em relação a covid, aprendemos no Barong a mudar algumas coisas com o carro em movimento e a AHF no banco de traz dizendo para irmos em frente. Além da distribuição das cestas básicas e vale gás, por meio de uma parceria com o Programa Estadual de Aids, o Grupo Pela Vidda São Paulo e o CRD, começamos a distribuição de antirretrovirais. Uma das primeiras pessoas com quem eu troquei ideias sobre isso foi o Beto, o Instituto de Infectologia Emílio Ribas também nos procurou e hoje já atendemos centenas de pessoas. Vamos até os serviços, retiramos os medicamentos, enviamos por correio, tem alguns casos que entregamos pessoalmente. Já levamos medicamentos até para as pessoas que moram em zona de risco e a experiência foi interessante, existem muitas pessoas vivem com HIV há mais de 20 anos e por vários motivos não tiveram contato com ONGs.”

Antes de encerrar a live, Roseli perguntou como são decididas as ações da AHF. Dra. Adele foi direta e revelou que a ONG toma decisões a níveis locais, regionais e internacional. “Tem os níveis locais de Paris, depois vem os das regiões e temos um comitê executivo, que se reúne a cada 15 dias. De três em três meses tem um outro comitê de diretores onde você apresenta os dados, as iniciativas e tem um feedback que reverbera para o campo. A AHF é uma ONG que angaria o seu recurso prestando assistência e vendendo medicamentos para as seguradoras de saúde dos pacientes vivendo com HIV/aids nos Estados Unidos. Todo lucro é aplicado nos 45 países do programa global. A AHF talvez seja uma organização que tem estabilidade financeira para o futuro, sabemos que a covid vai levar a crise econômica para as ONGs também. A AHF provavelmente não terá este tipo de problema porque tem recurso garantido.”

O fundador

A jornalista quis saber ainda quem foi o iluminado que teve a ideia de fundar a AHF.

Ele se chama Michael Weinstein, judeu, gay, que no início da epidemia do HIV resolveu criar uma casa para as pessoas irem morrer. Ele usou todo dinheiro da família para que as pessoas pudesse morrer com dignidade. O local fez o maior sucesso, ele abriu um outro. Depois as pessoas não estavam mais morrendo, então ele decidiu criar uma clínica e começo a manter o trabalho com o dinheiro arrecado nos brechós. As pessoas doavam roupas e outros objetos. Essa ainda é uma forma de renda da AHF. Ele começou a atender as pessoas, contratou profissionais de saúde e passou a doar medicamentos para África. A história é bem bonita e foi isso que me fez querer trabalhar com a AHF, tendo este passado que eu me identifico. AHF permite que os seus diretores tenham iniciativa e voz. Essa autonomia é importante, você imagina o quanto o nosso chefe é uma pessoa inteligente e visionária. Ele está investindo agora em comprar hotéis em Los Angeles para dar abrigo aos moradores em situação de rua. São questões humanitárias e necessárias. Veja que ele dá muita autonomia aos chefes dos birôs e dos países.

A live durou uma hora, os especialistas falaram sobre o que a aids ensinou e o que podemos trazer para covid, solidariedade como ação que deve nortear tudo que a gente faz e Roseli desafiou o grupo a resumir a conversa em uma palavra. Ela deixou alegria, Guillermina empoderamento, Marta escolheu coragem, Márcio, perseverança, Adele, solidariedade e Beto finalizou com empatia.

Você pode rever a live no Facebook oficial da Agência Aids e tem uma versão reduzida na TV Agência Aids.

Talita Martins (talita@agenciaaids.com.br)

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