Em 1989, profissionais da saúde e membros da sociedade civil criaram a Declaração dos Direitos Fundamentais da Pessoa Portadora do Vírus da Aids. O documento foi aprovado durante o primeiro Encontro Nacional de ONG Aids (ENONG), em Porto Alegre (RS), com o apoio do Ministério da Saúde. Nesse sentido, uma série de medidas, com respaldo na legislação, foram tomadas para que as pessoas vivendo com HIV/aids tenham acesso à saúde pública, ao respeito e à dignidade humana.

A Agência de Notícias da Aids preparou uma série especial sobre os benefícios aos que as pessoas que vivem com o vírus têm direto e como eles funcionam. Na reportagem de hoje, vamos falar sobre a aposentadoria por invalidez, concedida a quem sofre de alguma incapacidade incurável e que impossibilite a realização do trabalho.

A aposentadoria por invalidez tem sido um desafio para as pessoas que contavam com esse benefício há anos. Isso porque teve início em 2016, o programa de “desaposentadoria” do governo Temer, que visa identificar fraudes e aliviar as contas da Previdência, e acabou atingindo as pessoas que vivem com HIV e precisam do benefício. Muitas delas estão fora do mercado de trabalho há mais de 20 anos e sofreram com os efeitos colaterais em decorrência do tratamento para o vírus, o que as impediu de trabalhar.

Marcelo atuava na área de administração de empresas quando precisou ser internado na UTI em decorrência da aids no ano de 2001. Em 2009, ele teve acesso à aposentadoria por invalidez. Em 2019, foi convocado a fazer nova perícia por conta operação “pente-fino” e agora está no período de readequação, ou seja, já perdeu 50% do benefício e, se a situação não for revertida, em 1 ano não o receberá mais.

Hoje aos 51 anos, Marcelo sobrevive através da terapia de resgate devido à dificuldade de adesão ao tratamento inicial, ainda realizado com o AZT, responsável por efeitos colaterais que o impediram de trabalhar. Além dos 9 comprimidos diários para o HIV, Marcelo também depende de outras medicações para controlar problemas consequentes do tratamento como pressão sanguínea e depressão.

Fora do mercado de trabalho há duas décadas, ele não vê possibilidade de acessar um emprego. “Não tive condições de construir patrimônio porque vivi com uma sentença de morte na cabeça. Também não tenho condições de trabalhar o dia todo, porque não tenho disposição, minha saúde oscila. Às vezes estou bem, às vezes não. Além disso, há o envelhecimento precoce. E ainda que tivesse condições, quem vai me contratar depois de tanto tempo? Vão perguntar porque fiquei parado, se eu disser que tive aid,s aí que não contratam mesmo.”

 

Como a aposentadoria por invalidez funciona

O presidente da Comissão de Direito Previdenciário da OAB de São Paulo, José Roberto Sodero, explica que o fato de haver uma doença, ainda que incurável, não quer dizer, em um primeiro momento, que há incapacidade para o trabalho. “No entanto, se ainda há estigmatização, ela deve ser analisada, pois está previsto que a capacidade biopscicosocial da pessoa seja avaliada, o que inclui suas questões sociais. Assim, o fato de a pessoa estar há muito tempo fora do mercado de trabalho também deve ser levado em conta.”

José Roberto Sodero também esclarece que o INSS (Instituto Nacional de Seguro Social) deveria trabalhar com reabilitação profissional, já que possui um núcleo voltado pra esse fim. “Antes de retirar o benefício, está previsto na norma nº8213/91, a obrigação do INSS de reabilitar essas pessoas para que possam se preparar para serem reinseridas no mercado de trabalho. Antes deste processo, não se pode cortar o benefício.”

Além disso, o advogado afirma que é importante avaliar a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (Pnad/IBGE), que também analisa a incapacidade social, observando as idades e percentuais das pessoas que atuam em uma determinada área de trabalho.

Patrícia Diez, advogada especialista em saúde e Previdência Social afirma que “uma coisa é você descobrir que tem HIV hoje e viver com uma doença crônica, outra coisa são os sobreviventes da aids, que tiveram sua capacidade laborativa afetada, além do envelhecimento precoce aliado ao fato de que estão afastadas do mercado de trabalho há 20 anos. São pessoas frágeis do ponto de vista biopsicosocial. Não há um olhar individualizado, como é recomendado pelo próprio INSS. Essa recomendação tem sido ignorada pelos peritos.”

 

Projeto de Lei tenta reverter desaposentadoria

 

“Temos em torno de 25 mil pessoas aposentadas pelo HIV. Pouquíssimas conseguiram reverter a situação do pente-fino pelo total despreparo dos peritos judiciais em relação a aids”, explica o ativista da Articulação Nacional de Saúde e Direitos Humanos, Renato da Matta.

O Projeto de Lei 10.159/2018, do Senado, prevê que pessoas com HIV/aids aposentadas por invalidez podem ser dispensadas da reavaliação feita pelos médicos peritos do INSS. O PL foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) da Câmara dos Deputados e segue para sanção do presidente Jair Bolsonaro.

“A intenção é reverter todos esses casos. Como você vai reinserir uma pessoa que está 20 anos parada, com 50 anos de idade no mercado de trabalho?”, questiona o ativista.

“Tenho recebido casos de pessoas que estão sem medicamento porque não têm dinheiro nem mais para pagar o transporte até o local onde buscam remédios. Além disso, essa pessoa vai adoecer e as consequências vão além. É uma economia burra, porque, com isso, o governo terá gastos com novas infecções, com tratamento dos doentes por aids, com UTI… Os peritos muitas vezes não entendem da patologia, e sequer olham os laudos. Isso precisa mudar”, finaliza Renato.

 

Foi desaposentado? Descubra o que fazer

Patrícia Diez explica que, ainda que a lei entre em vigor, só é possível recuperar o benefício se cada um entrar na justiça, uma vez que a lei não retroage. “Caso o PL seja aprovado, aqueles que foram afetados pelo pente-fino não terão os benefícios de volta a não ser por decisão individual, ou ação civil pública.”

“Temos casos de pessoas que abandonaram o tratamento, e afirmam que, já que a analise é tão superficial vão parar o tratamento porque ou morrem logo, ou a carga viral vai subir, ficarão doentes e, então, terão acesso ao benefício de volta”, conta.

Para que a situação seja revertida, a advogada orienta os primeiros passos. “Em primeiro lugar, recomendo que a pessoa busque uma organização não governamental que trabalhe com o tema como o Grupo de Incentivo à Vida ou o Grupo Pela Vidda, que tem advogados especializados no assunto, já que o HIV é um tema muito específico.”

Patrícia explica que, caso a pessoa não consiga ter acesso à essas organizações, pode também procurar pela defensoria pública ou um advogado previdenciário. “É importante reunir toda a documentação possível como exames e laudos médicos. Você pode solicitar, em uma agência, o resultado do laudo médico pericial do Sistema de Administração de Benefícios. Isso lança luz para fazer um bom processo ou entrar com recurso da decisão.”

José Roberto Sodero orienta, inclusive, que quando a pessoa for solicitar essa documentação perante ao INSS, pode ir acompanhada de um advogado especialista. E que é possível, até mesmo, levar um pendrive para que o servidor faça o download de todos os arquivos disponíveis no momento.

O tempo entre a entra do processo até a sentença tem sido de oito a doze meses.

 

Como se preparar para a convocação 

 

Segundo Patrícia Diez, é importante a pessoa que recebe o benefício estar preparada para uma convocação, já que algumas perícias são chamadas com intervalos de 5 dias, não havendo, assim, tempo suficiente para que o segurado recolha as informações necessárias para complementar a avaliação do perito.

“Para estar preparado, peça para seu médicos fazer laudos que se baseiem em questões como envelhecimento precoce, efeitos colaterais do medicamento, e outras informações que avaliem questões sociais e vão além da carga viral, que geralmente é o único fator avaliado nas perícias.”

 

Como solicitar a aposentadoria 

De acordo com informação do INSS, inicialmente o cidadão deve requerer um auxílio-doença, que possui os mesmos requisitos da aposentadoria por invalidez. Caso a perícia médica constate incapacidade permanente para o trabalho, sem possibilidade de reabilitação para outra função, a aposentadoria por invalidez será indicada. Os requisitos são:

  • Ter cumprido ao menos 12 meses de contribuições para a Previdência Social
  • Possuir qualidade de segurado
  • Comprovar, em perícia médica, doença que o torne temporariamente incapaz para o seu trabalho;
  • Para o empregado em empresa: estar afastado do trabalho por mais de 15 dias (corridos ou intercalados dentro do prazo de 60 dias se pela mesma doença).

Para realizar agendamento ou ter acesso a mais informações clique aqui.

 

 

Dicas de Entrevista:

Renato da Matta, presidente da Articulação Nacional de Saúde e Direitos Humanos (ANSDH)

Telefone: (21) 99663 6673

E-mail: renatodamatta.ansdh@gmail.com

 

Patrícia Diez, advogada especialista em saúde e Previdência Social

E- mail: patricia_diez@ig.com.br

Telefone do Núcleo Jurídico de Assistência à Saúde: 2621-4844

 

José Roberto Sodero, presidente da Comissão de Direito Previdenciário da OAB de São Paulo

Telefone OAB-SP: (11) 3291-4953

 

Grupo de Incentivo à Vida

Telefone: (11) 5084-0255

 

Grupo Pela Vidda

Telefone São Paulo: (11) 3259-2149

Telefone Rio de Janeiro: (21) 2518-3993

 

Jéssica Paula (jessica@agenciaaids.com.br)