Como a maior emergência sanitária no mundo do último século, a pandemia da Covid-19 trouxe novos hábitos, experiências e também palavras à linguagem popular.

“Achatar a curva”, “imunidade de rebanho” e “eficácia da vacina” passaram a fazer parte do dia a dia das pessoas.

Embora alguns aspectos da disseminação de termos emprestados das áreas de biologia e saúde sejam positivos, a propagação de definições imprecisas e confusões gera também desinformação e pode piorar a comunicação na pandemia.

Paulo Lotufo, epidemiologista e professor titular de clínica médica da Faculdade de Medicina da USP, ressente uma “oportunidade perdida” de parte das universidades e instituições públicas de aproveitarem o momento para educar as pessoas sobre isso.

“O aprendizado vem quando há dúvida, então o momento teria sido ótimo para trazer esses conceitos quando as pessoas estão curiosas”, diz.

Alguns termos foram criados pelos meios de comunicação para ajudar a esclarecer a situação grave da pandemia. “’Achatar a curva’ não é um termo que existe tradicionalmente, mas foi uma forma didática de explicar porque era importante diminuir os novos casos para evitar a sobrecarga das unidades hospitalares”, afirma Lotufo.

É preciso ter cautela, porém, com algumas jogadas políticas que favoreceram a disseminação de certas ideias e conceitos. “Pico em epidemiologia só pode ser observado no passado, ele é um dado pretérito. Ficar dizendo quando vamos passar do pico foi uma discussão completamente infundada”, diz.

Veja alguns termos disseminados pela pandemia que ajudaram —ou não— a compreender a situação.

Endemia, epidemia e pandemia: endemia caracteriza certa quantidade de casos que historicamente já ocorrem em determinada região, como doença de Chagas e malária. Quando o nível endêmico (que pode ser 0) é rompido pelo aumento de casos, pode-se considerar que há um surto ou epidemia. Quando a epidemia afeta vários países ou continentes, vira uma pandemia.

Achatar a curva: o termo, amplamente utilizado pela mídia e pelas próprias autoridades médicas para explicar o perigo de um alto número de casos ao mesmo tempo, não veio emprestado da epidemiologia, mas se tornou uma forma didática de explicar a importância de controlar a expansão da doença e evitar o colapso dos sistemas de saúde. Ao diminuir o número de infecções, novos casos surgem divididos ao longo do tempo, e não todos de uma vez, “achatando a curva” de crescimento de casos.

Imunidade de rebanho (coletiva): é um conceito da epidemiologia que aponta que quanto mais indivíduos forem imunes a uma doença transmissível, menor será a possibilidade desse patógeno encontrar pessoas suscetíveis e, com o passar do tempo, a doença é dizimada. Epidemiologistas e infectologistas alertam que a imunidade de rebanho só existe com a vacinação. O número de óbitos necessário para atingir uma imunidade coletiva seria muito elevado e pouco ético.

Médias móveis (de casos e óbitos): surgiram como uma forma de diminuir os efeitos da variabilidade de notificação de casos de Covid-19, principalmente causada por por atraso nos exames e notificações. O número de casos/óbitos diário é somado e dividido por sete, alcançando um número equivalente à média de casos e óbitos daquela semana epidemiológica.

Lockdown e quarentena: é comum, frente a uma epidemia, que se faça uma quarentena, ou seja, determinar o isolamento de determinada área para evitar a propagação da doença. Diversos países adotaram regimes distintos de quarentena. O termo lockdown, mais restritivo, determinava uma situação de total reclusão dentro de casa, proibição de circulação nas ruas —com possibilidade de multas para quem desrespeitasse— e de tráfego entre municípios, estados e fronteiras dos países. No Brasil, nunca foi estipulado um lockdown. Aqui, diversos estados adotaram medidas distintas de quarentena, inclusive com datas de início e de afrouxamento diferentes.

Comorbidade e doenças crônicas: são condições prévias de saúde, como diabetes, hipertensão e obesidade, não transmissíveis e muitas com alta incidência na população. Como podem afetar o sistema imunológico do portador, frente a um quadro infeccioso como a Covid-19, os pacientes com essas condições podem ter um quadro agravado da doença. A taxa de mortalidade também é maior para pacientes com comorbidades, por isso são considerados grupos de risco para a Covid-19.

Índice de reprodução (R0) e transmissão do vírus: no início da pandemia, muito se falou sobre a velocidade de propagação da doença, medida pelo índice de reprodução do vírus. Basicamente, o cálculo de novos casos pode ser feito a partir do número de pessoas contaminadas a partir de um único caso —R zero. Esse valor, quando calculado ao longo do tempo, pode dar a taxa de transmissão ou contágio (Rt) do vírus.

Pesquisa pré-clínica: São os ensaios feitos antes dos testes em humanos, envolvendo, por exemplo, entender como os patógenos agridem o organismo hospedeiro e a busca por possíveis antígenos. Pode demorar vários anos até esse corpo de conhecimento ser sólido o suficiente.

Antígenos: vírus, bactérias, fungos e demais parasitas que entram no nosso organismo e reconhecidos como “corpos estranhos” pelo nosso sistema imunológico. A pesquisa de uma vacina começa por primeiro identificar qual o antígeno alvo para o fármaco, ou seja, qual será o “corpo estranho” apresentado ao organismo para induzir a resposta imune.

Fases 1, 2 e 3 de testes em humanos: quando um medicamento ou vacina é aprovado para testes em humanos, em geral suas ações e a segurança mínima já foram demonstradas em outros animais, como em roedores e outras espécies de macacos. As fases de testes em humanos possuem objetivos diferentes. Em geral, na primeira fase, o medicamento ou vacina é testado em dezenas de humanos saudáveis. A ideia é ver se o fármaco é seguro em humanos e não causa efeitos colaterais. Essa fase de pesquisa pode demorar alguns meses e muitos candidatos podem falhar. Na segunda fase, são testados centenas de voluntários para saber se o fármaco, além de seguro, tem chances de funcionar. No caso de uma vacina, a ideia é que sejam gerados anticorpos contra o patógeno. Por fim, na fase 3, deseja-se saber se o medicamento ou vacina é eficaz. Essa é a última fase antes da aprovação para uso na população e não há previsão específica de duração desta etapa. Nela, com base nos resultados de segurança e de possível eficácia, milhares de pessoas são vacinadas e outras milhares recebem placebo (uma injeção que não contém o imunizante propriamente dito) para quantificar o potencial de imunização da candidata a vacina.

Farmacovigilância: após as 3 fases de ensaios em humanos, laboratórios e institutos de pesquisa acompanham por um a dois anos os efeitos dos medicamentos ou vacinas na população. Essa fase, chamada de farmacovigilância, pode indicar, por exemplo, efeitos colaterais raros que aparecem somente quando o fármaco é utilizado em milhões de pessoas.

Imunogenicidade: capacidade da vacina provocar uma resposta imunológica (produção de anticorpos ou de células de defesa), a imunogenicidade é frequentemente confundida com eficácia do imunizante, só medida a partir de uma observação mínima de casos em um grupo controle versus o grupo que recebeu a vacina. Em geral, a imunogenicidade pode ser medida pela taxa de anticorpos ou células T (mais difíceis de serem quantificadas) por meio de exames sorológicos ou de fluxo de células.

Eficácia: a eficácia, por sua vez, é a capacidade da vacina de fato reduzir a chance de uma pessoa se infectar. Uma vacina ideal impediria a infecção pelo vírus, reduzindo também a sua cadeia de transmissão (como ocorre com as vacinas de sarampo). Mas as vacinas podem também impedir a manifestação dos sintomas ou ainda prevenir contra quadro grave da doença, como é o caso da vacina da gripe. Para acabar com a pandemia, é necessário que uma grande parcela da população seja vacinada, o que pode demorar.

ECA 2: a enzima conversora da angiotensina 2 ficou conhecida como a via de entrada do vírus nas células do organismo. Esses receptores estão presentes em células de diversos sistemas do corpo, como o respiratório, no intestino, rins, vasos sanguíneos, neurônios e outras células cerebrais.

Proteína S: para entrar nas células do organismo, o Sars-CoV-2 usa a enzima conversora da angiotensina 2 como porta de entrada. A “fechadura” é a proteína S do Spike (ou espícula) do vírus, presente em toda a capa do vírus e que forma a chamada “coroa”. Para tentar combater a infecção e entrada do patógeno no organismo, as principais vacinas buscam atacar justamente essa proteína, induzindo à produção de anticorpos neutralizantes —que iriam impedir essa ligação entre o spike e a ECA 2 celular.

Cepas, linhagens e mutações: em geral, uma cepa é caracterizada por alterações estruturais significativas no material genético do parasita que acabam por modificar também os sintomas e a seriedade da infecção no hospedeiro —é o caso das “superbactérias”. As linhagens, por sua vez, correspondem a formas do vírus na natureza que evoluíram a partir de diferentes mutações. Diferentemente do vírus da influenza, o Sars-CoV-2 é um vírus que vem apresentando mutações em uma baixa taxa. Pouco se sabe sobre as consequências que mutações podem ter na produção das vacinas.

Anticorpos IgM e IgG: são proteínas produzidas pelo nosso organismo —pelas células de defesa conhecidas como linfócitos B— que se ligam ao antígeno (substância estranha) e tentam neutralizá-lo, isto é, bloqueiam a via de entrada do vírus na célula. A presença de anticorpos gera também um sinal retroativo para o sistema imunológico, que passa a responder com mais células de defesa, como os macrófagos e os linfócitos T. Existem várias classes de anticorpos que costumam surgir em diferentes momentos da infecção. Em geral, no início são produzidos anticorpos do tipo IgM (imunoglobulinas M), mais generalistas e que diminuem em quantidade rapidamente após o terceiro ou quarto dia de contágio. As imunoglobulinas G (IgG) são mais específicas e geram uma resposta imune de memória —ao entrar em contato novamente com aquele antígeno, sua produção será acelerada numa tentativa de combater rapidamente a infecção. No caso da Covid-19, anticorpos do tipo IgG possuem o pico de produtividade a partir do 8˚ a 10˚ dia de contágio.

Linfócitos T e B: são algumas das células de defesa do nosso organismo, produzidas pelo sistema imunológico. Existem diversos tipos de respostas imunes que geram diferentes células. A resposta imune inata não é específica e responde a todos os patógenos de maneiras diferentes. Já a resposta imune adaptativa é gerada em resposta específica a um patógeno, e envolve a produção de linfócitos. Os linfócitos B são os responsáveis pela produção dos anticorpos. Já os linfócitos T subdividem-se em diversas classes, entre elas a CD4 e CD8. Essa resposta, também chamada de celular, é mais duradoura e parece estar ligada a proteção dada por algumas vacinas em desenvolvimento contra a Covid-19.

Fonte: Folha de S. Paulo