Num mundo ideal, uma das formas de se erradicar a epidemia de uma doença transmissível seria identificar, numa comunidade, todos os indivíduos infectados com o agente infeccioso em questão e em seguida tratá-los para que deixassem de ser transmissores da infecção para novas pessoas.

 

Entretanto, a aplicação dessa estratégia no mundo real não é tão fácil quanto parece. No caso das epidemias de Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs), entre os vários obstáculos existentes está o fato de que um mesmo quadro clínico pode ser causado por diferentes vírus ou bactérias, o que dificulta bastante a escolha de um tratamento preciso e eficaz.

 

Quer um exemplo? Uma pessoa que começa a ter queimação ao urinar e saída de secreção purulenta pela uretra, sintomas típicos de uma uretrite, pode estar infectada pelas bactérias gonorreia ou clamídia. Mas pode também estar infectada pelas duas bactérias simultaneamente. Ou ainda não estar com nenhuma delas, mas por outra bactéria menos frequente na comunidade.

 

Diferentes agentes infecciosos precisam de diferentes medicamentos para serem tratados, e se usarmos um antibiótico errado, não só não estaremos tratando a infecção como ainda poderemos contribuir para a seleção das bactérias resistentes a esse medicamento.

 

No Brasil, o diagnóstico específico do agente infeccioso de uma IST também faz parte do mundo ideal devido à falta de uma rede laboratorial que desse suporte ao cuidado das ISTs. Assim, sabendo que essa é a realidade da maior parte dos países de baixa renda em todo o mundo, já há décadas a OMS (Organização Mundial da Saúde) recomenda a chamada Abordagem Sindrômica das ISTs.

 

Nessa abordagem, o tratamento de um indivíduo com sintomas de uma IST é escolhido de acordo com os agentes que, naquela região, são os mais frequentemente causadores daquele caso clínico. No exemplo dado acima, o paciente aqui no Brasil receberia para sua uretrite o tratamento tanto para gonorreia quanto para clamídia.

 

Igual a tudo na vida, a Abordagem Sindrômica das ISTs tem um lado bom e um lado ruim. Entre os aspectos positivos está a rapidez e resolutividade, com a prescrição do tratamento já na primeira consulta, não dependendo de um retorno do paciente para checar os resultados de exames. A não dependência de um laboratório faz também com que essa estratégia seja muito mais barata.

 

No entanto, nesta abordagem são prescritos muito mais antibióticos do que o necessário, o que com o tempo pode provocar uma alteração no perfil de bactérias causadoras das ISTs, bem como na sua sensibilidade a essas drogas. Em algumas regiões do mundo, por exemplo, está ocorrendo nos últimos anos o aumento dos casos de ISTs por Mycoplasma genitalium resistente aos antibióticos macrolídeos.

 

Nesse cenário, é fundamental compreender que o que causa a seleção de cepas bacterianas resistentes é o uso inadequado de antibióticos e não o sexo.

 

Para reduzir o impacto desse lado negativo, quando a OMS recomenda a Abordagem Sindrômica das ISTs, inclui no plano também a vigilância epidemiológica ativa da incidência dessas ISTs, dos agentes mais comuns encontrados na comunidade e do seu perfil de sensibilidade aos antibióticos normalmente utilizados. No entanto, por ser cara e trabalhosa, essa parte do plano costuma ser deixada de lado pelos governos.

 

Outro aspecto negativo da Abordagem Sindrômica das ISTs é o foco de suas ações exclusivamente nos indivíduos que apresentam formas sintomáticas de ISTs, quando sabemos que na maior parte dos casos uma IST não vai causar nenhum sintoma em um indivíduo. Se não rastrearmos os portadores assintomáticos de ISTs, estaremos deixando uma gigantesca epidemia silenciosa acontecendo no subterrâneo da sociedade.

 

No resto do mundo, inclusive em países de renda baixa e média, já se está discutindo o abandono da Abordagem Sindrômica das ISTs, para passar a rastrear os portadores assintomáticos e prescrever o tratamento direcionado ao agente identificado, mas para isso é necessária uma rede laboratorial diagnóstica capaz de identificar com rapidez o agente infeccioso e o perfil de sensibilidade às drogas utilizadas para tratamento. E isso custa dinheiro. É hora de começar a discutir isso também por aqui, pois controlar os casos de gonorreia, sífilis ou clamídia não vai ser barato.

 

Apostar na forma mais barata de resolver problemas complexos dificilmente teve bons resultados na história da humanidade. Para controlar as epidemias de ISTs no Brasil precisamos de investimento, planejamento e interesse político. Os ainda numerosos casos de ISTs são culpa da falta de coordenação nesse enfrentamento e não das pessoas que se infectam com essas bactérias.

Fonte: Ricardo Vasconcelos - Viva Bem