Na tarde de sábado (30), uma das sessões principais da 24º Conferência Internacional de Aids que está sendo realizada em Montreal, Canadá, até dia 2 de agosto, teve como tema “HIV em Conflitos Armados”.

Os conflitos armados agravam e aceleram as vulnerabilidades de populações já expostas a riscos, incertezas e instabilidades. A disponibilidade e acessibilidade dos serviços de saúde, bem como as estratégias de redução de danos, são fortemente prejudicadas nesses contextos precários.

Os conflitos atuais são uma causa imediata de sistemas de saúde falidos e evidentemente aumentarão as taxas de mortalidade entre as pessoas que vivem com HIV ou TB. Além disso, milhões de pessoas em movimento têm um impacto nos sistemas de saúde dos países para os quais se deslocam. 

A atual crise na Ucrânia mostra a falta de políticas que abordem, reconheçam e apoiem as pessoas em movimento. Essas populações não são identificadas como população-chave pelo UNAIDS, adicionando complexidades na tão necessária provisão de apoio e serviços, resultando em responsabilidades confusas dentro da comunidade internacional e ambientes de financiamento difíceis.

Abrindo a sessão, a mediadora Joanne Liu, médica, professora da School of Population and Global Health da McGill University e integrante dos Médicos Sem Fronteiras, disse que pessoas vivendo com HIV ou doenças de situação crônica sem risco de morte se tornaram dano colateral de guerra. “Pessoas vivendo com HIV em zonas de guerra são duas vezes vítimas. Lutam contra o vírus e contra um sistema de saúde que não funciona. Sem contar todos os efeitos colaterais de segurança, alimentação e estresse. O que acontece quando não há tempo de planejar um plano de emergência, quando eclode uma guerra? Como responder ao HIV em zonas de conflito? Focar políticas de aids para refugiados e pessoas em trânsito?” Em seguida, chamou Andriy Klepikov, diretor da Alliance for Public Health (APH – Aliança pela Saúde Pública), na Ucrânia, para sua apresentação.   

Inicialmente, Andriy forneceu algumas estatísticas sobre seu país. Hoje, na Ucrânia existem 250 mil pessoas vivendo com HIV, 16 mil em tratamento. Com mais de 20% do território ocupado pelo exército russo, o país teve 123 hospitais totalmente destruídos e 746 unidades de saúde atacadas. Mais de 15 milhões de pessoas tiveram que sair de suas casas. São 9,2 milhões de refugiados, cerca de 6 milhões dentro da Ucrânia. O total de civis feridos chega a 11.544 e 5.024 civis mortos. A economia entrou em colapso, mais de 50% dos negócios fecharam suas portas, levando a um grande índice de desemprego. De acordo com o  Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), 9 entre 10 ucranianos enfrentarão em breve situação de pobreza. 

Apesar das atividades hostis, o APH conseguiu garantir a continuidade dos atendimentos para mais de 200 mil representantes das populações chave: homens que fazem sexo com homens, pessoas trans e usuários de drogas injetáveis”, contou o ativista. Em áreas afetadas pela guerra, a Aliança aumentou a provisão de medicamentos para pessoas com HIV para períodos de 3 a 6 meses; 556 pessoas começaram PrEP nos primeiros cem dias de Guerra; e houve aumento de procura dos serviços pelas populações vulneráveis, mostrando que os serviços de prevenção das ONGs continuam altamente relevantes”, observou ele. .

Andriy relatou que os serviços de testagem e PrEP estão voltando aos trilhos pouco a pouco. Foram realizados 31.715 testes entre a populações-chave nos primeiros 100 dias de Guerra, com 1.852 resultados positivos detectados e 1.662 iniciando tratamento com antirretrovirais. 

A demanda por PrEP cresceu 6 vezes durante os 100 primeiros dias comparados com os 100 dias anteriores à Guerra. Para atender a todos, foram iniciados serviços móveis para entregar PrEP e ART, principalmente em áreas mais destruídas. Alguns serviços, como entregar substitutos de opioides, foram assumidos pela sociedade civil. Nenhum paciente enfrentou interrupção de tratamento,

A APH modificou suas atividades para atender as necessidades humanitárias e fornecer apoio de emergência. No início da Guerra, perdeu contato com 20 mil pessoas com HIV sob tratamento. Foi necessário esforço para encontrar essas pessoas e motivar a volta ao tratamento em meio a um conflito armado.

Saúde mental

Para ilustrar as dificuldades das pessoas com HIV em meio a um conflito armado, Andriy contou o caso de Anastaysia, uma ucraniana de 29 anos de uma pequena cidade a oeste de Kiev, diagnosticada com HIV em fevereiro deste ano. Ela ficou ansiosa e temerosa do que isso significava para o seu futuro. Duas semanas depois, a Rússia invadiu a Ucrânia.

Ela escapou de sua cidade, quase foi rendida pelos russos, e se escondeu em um porão em outra cidade por 10 dias. Ela tinha suprimentos de antirretrovirais somente por três dias. “Eu não sabia o que me mataria primeiro, o HIV ou as bombas”, contou ela. O APH renovou seu suprimento de ART e forneceu artigos básicos de sobrevivência. Não houve interrupção de tratamento, mas isso não resolveu a situação de Anastaysia, porque agora a grande ameaça é a saúde mental.“Eu não consigo dormir. As sirenes avisando dos ataques aéreos todos os dias me enlouquecem. Preciso de ajuda profissional”, implorou ela.

 Andriy encerrou sua apresentação enumerando as necessidades a serem resolvidas na Ucrânia: financiamento flexível, necessário para manter a agilidade e atender as necessidades que surgem; fundos para apoio à saúde mental de toda a população, não só aqueles vivendo com HIV; e acesso à inovação, aos tratamentos e PrEP injetáveis, de longa duração, ainda não disponíveis no país em um momento em que mais há necessidade. 

UNAIDS e os conflitos mundiais

Participando do painel, Vinay Saldanha, Diretor da Equipe de Suporte Regional para a Europa Oriental e Ásia Central do UNAIDS, afirmou que “talvez nunca tenhamos visto  a intensidade, a velocidade e a ferocidade do que tem acontecido durante esta Guerra na Ucrânia. Mas infelizmente o que estamos vendo e o porquê de estar acontecendo na Ucrânia reflete os desafios e repete os atalhos que temos visto em tantas situações humanitárias diferentes. Infelizmente, não é um caso único.”

Segundo ele, da guerra no Afeganistão aos conflitos na Síria, Iêmen, Congo, o que temos visto é um grande e complexo desafio. Emergências globais têm aumentado exponencialmente e tem colocado em risco estratégias, planos negociados e compromissos para acabar com a aids.

Saldanha discorreu sobre números mundiais. No ano passado, antes do início da Guerra da Ucrânia, havia 80 milhões de pessoas ao redor do mundo que foram obrigadas a abandonar seus lares por causa de conflitos violentos ou violações de direitos humanos; uma em cada 14 pessoas vivendo com HIV, ou 7% do total estão vivendo em situações de conflito ou crises humanitárias; só em 2022, 274 milhões de pessoas estão precisando de ajuda humanitária, superando o número de 2021 eram 234 milhões, que já era o maior índice em décadas. 

Ele explicou que essas pessoas não são classificadas formalmente como populações-chave pelo Unaids, porque esta classificação é feita pelo risco comportamental, não situacional.  “No entanto, para a estratégia global de aids é muito claro que estas pessoas estão incluídas, não somente pela vulnerabilidade ao HIV, mas a todos os outros fatores que elas estão enfrentando devido a um conflito armado. E numa estratégia imediata, a curtíssimo prazo, dias, que inclui todas as organizações e governos parceiros do Unaids”, concluiu,

 

Redação da Agência de Notícias da Aids