Abrir uma clínica de saúde sexual no centro de São Paulo, quarta maior metrópole do mundo, era um desejo antigo da Aids Healthcare Foundation/AHF Brasil.
Primeiro pela importância de ter um serviço com acolhimento e atendimento 100% gratuitos para todas as pessoas, sem distinção de sexo, ao contrário da unidade mantida pela AHF no Recife, a primeira inaugurada pela ONG no país. Específica para a população masculina, por conta de um cenário epidemiológico particular, a Clínica do Homem do Recife já realizou, desde 2018, mais de 60 mil atendimentos.
Segundo pela simbologia de abrir as portas de um serviço com foco em saúde sexual na Praça da República, região por onde circulam populações marcadas pelo estigma e pela maior vulnerabilidade para o HIV e outras infecções sexualmente transmissíveis: homens gays, travestis, pessoas trans, trabalhadores sexuais, imigrantes, pessoas que usam drogas e pessoas em situação de rua.
Em 1º de dezembro de 2022, Dia Mundial de Luta contra a Aids, o sonho se concretizou: estava aberta no coração de São Paulo a Clínica Comunitária de Saúde Sexual – Espaço de Cuidados e Prevenção às IST, com atendimento multidisciplinar, testagem e orientação para HIV/aids e hepatites B e C, além de diagnóstico e tratamento de sífilis e outras IST.
Às vésperas do aniversário de 469 anos da cidade e passados os primeiros 45 dias de funcionamento da clínica, alguns dados (ainda que preliminares) evidenciam os desafios que temos pela frente – e que já estamos enfrentando. De um total de 80 pessoas atendidas, 5% foram diagnosticadas com HIV (elas foram encaminhadas para tratamento e acompanhamento em unidades do Sistema Único de Saúde em São Paulo e cidades da Região Metropolitana), 12,5% com HPV e 16,25% com sífilis (elas foram tratadas ou estão em tratamento na própria unidade). Além disso, entre as pessoas testadas para HIV, 70% tinham entre 20 e 39 anos.
Em relação aos diagnósticos, deparamos com percentuais altos, que demonstram de maneira inconteste a necessidade de reforçar campanhas contínuas de comunicação, para informar adequadamente as pessoas sobre prevenção, sinais, sintomas e tratamento das principais infecções sexualmente transmissíveis; além de estreitar o relacionamento entre sociedade civil e órgãos governamentais, algo que se esgarçou bastante nos últimos anos no Brasil.
Não basta o serviço existir. É preciso que as pessoas saibam que ali elas podem receber atenção e assistência, sem terem de pagar nada por isso. Não é algo trivial para populações majoritariamente empobrecidas (condição agravada sobretudo no pós-pandemia de covid-19); tradicionalmente com baixos índices de autocuidado e de frequência a unidades de saúde; e rotineiramente maltratadas pelo preconceito e pela discriminação – elementos que formam um tripé vicioso de exclusão e negação de direitos básicos.
E aqui entra outro diagnóstico essencial para entender iniciativas como a da AHF dentro de um modelo híbrido de atenção e linhas de cuidado em relação ao HIV e às IST, seja para a população geral, seja para pessoas mais vulneráveis: é urgente superar eventuais divergências, ampliar entendimentos e concentrar esforços entre organizações da sociedade civil, esferas governamentais (especialmente da gestão do SUS), conselhos e entidades profissionais e representantes da academia.
Só assim será possível, por exemplo, dar resposta a questões urgentes em relação à epidemia de HIV/aids e outras IST, como a ampliação do diagnóstico e do início de tratamento precoce (represados durante a pandemia de covid-19 e com alto potencial impactar negativamente na qualidade de vida das pessoas e nos indicadores de saúde pública); e o resgate e a reconstrução do diálogo com a sociedade civil, parte fundamental da resposta brasileira ao HIV/aids que até pouco tempo atrás era referência mundial. Além disso, a meta ousada, porém factível, de eliminar a aids e as hepatites virais no Brasil até 2030, conforme assinalou em entrevistas recentes o médico sanitarista e epidemiologista Dráurio Barreira, novo diretor do Departamento de Vigilância de IST, HIV/Aids e Hepatites Virais do Ministério da Saúde.
Não será fácil, principalmente pelo subfinanciamento da saúde pública, que em 2023 deverá ter R$ 60 bilhões a menos do que em 2022. Este é um fator primordial: sem um orçamento adequado, precisaremos de um esforço monumental para debelar fatos epidemiológicos preocupantes, com o avanço do HIV em jovens com idade entre 15 e 24 anos, a média de 36 mil novas infeções por HIV e 13 mil mortes anuais por aids, e a chance 40 vezes maior de uma pessoa trans se infectar.
Mas coragem não nos falta, para cobrar mais preservativo e gel lubrificante; mais acesso às profilaxias pré e pós-exposição (PrEP e PEP); mais medicamentos de ponta, capazes de ampliar a adesão de pacientes ao tratamento; mais valorização da ciência e dos profissionais de saúde; mais políticas públicas que protejam e ampliem direitos, especialmente das populações mais vulneráveis, e que combatam o estigma e o preconceito contra pessoas que vivem com HIV/aids; e mais apoio para desenvolver projetos em parceria com gestores locais do SUS em regiões nas quais os gargalos de saúde pública em relação ao HIV/aids são mais urgentes.
Nesse sentido, as clínicas da AHF, em São Paulo e no Recife, são exemplos de que é possível fortalecer a resposta brasileira de forma transversal e integrada, com cada parceiro desempenhando seu papel dentro do entendimento maior de melhorar a qualidade de vida das pessoas que vivem com HIV/aids.
* Beto de Jesus é ativista pelos direitos humanos e diretor da AHF Brasil.