Este ano de 2020 foi o ano mais complexo dos meus 28 anos de vida. Escrevo esse texto justamente na madrugada, nas primeiras horas de meu aniversário, e faço uma retrospectiva sobre o que foi esse ano. Com certeza foi o ano do vírus, o ano de muitas surpresas, mas quero chamar a atenção para uma coisa: 2020 foi o ano em que se tornou mais explícito o quanto a saúde pública, ou a ausência dela enquanto direito social, são determinantes para a reprodução social da vida, e do próprio capital.

Mas esse ano também foi o que eu fui eleita co-vereadora num mandato coletivo, o mais votado do país com mais de 46 mil votos, e ser a primeira co-parlamentar intersexo da história brasileira. Pra quem não sabe, intersexo é a pessoa que nasce com aspectos biológicos dos “dois sexos” reconhecidos socialmente, masculino e feminino. Hermafrodita foi um termo já usado em outros tempos, mas inadequado e rejeitado pela comunidade assim nascida. O movimento intersexo, pela primeira vez, ganha sua representante no Parlamento. Do mesmo modo, o movimento de HIV/aids também adquire sua representação na Câmara Municipal de São Paulo, sendo a única parlamentar do país a viver com HIV (ao menos publicamente).

O fato de eu ser a única da letra I da sigla LGBTQIA+, e a única vivendo com HIV a compor uma Casa Legislativo diz muito desse país: um país ainda governado por mandatários donos de “sesmarias”, verdadeiros chefes de capitanias hereditárias, em geral homens brancos cisgêneros, e da burguesia. E que pouco ou nada representam as necessidades da população, algo que ficou muito nítido com a pandemia…

Se tem uma coisa que 2020 conseguiu mostrar foi o descaso à vida que a burguesia brasileira tem para com o povo, com a classe trabalhadora, o povo negro, a população LGBTQIA+, povos indígenas…
Mas mostrou também as diferentes formas de gerir a vida e a morte que os diferentes Estados-nações escolheram para lidar com a pandemia, mostrando também um conflito de modos diferentes de governança global ou de mover aquilo que Achille Mbembe vem chamando de “necropolítica”, ou política da morte.

Diante do vírus que prometia genocídio, vírus que ressucitou fantasmas da epidemia de aids como o grupo de risco (tanto o biológico, no caso de idosos e pessoas com comorbidades, como o “risco social”, das populações pobres e historicamente oprimidas), tivemos três “blocos” de condutas tomadas pela classe dominante (em geral branca) no mundo: 1) uma tentativa rápida de tentar conter a pandemia de coronavirus, com medidas restritivas duras (caso da Ásia), o que suavizou a experiência desses países nesse período pandêmico; 2) num meio termo, encontramos as medidas tomadas por outros países, essas também restritivas das liberdades, de distanciamento social, de isolamento, de paralização parcial da economia, mas de uma forma menos intensa que na Ásia; e 3) em outros países, de cunho populista e por vezes neofascista, o total negacionismo reinou, onde se destacam Estados Unidos e Brasil.

Diferente do que alguns falam na grande mídia brasileira, na disputa intra-burguesa evidente que existe entre certos donos de “sesmarias”, o tal coronelismo brasileiro representado por governadores de Estado (salvo raras exceções) e o bolsonarismo, é comum ouvirmos de que Bolsonaro ao ser negacionista é “ideológico” ou até mesmo “louco”. Primeiro que associar fascismo à loucura é das piores psicofobias possíveis de existir, e segundo que não há nada de tão novo assim na postura de Bolsonaro.

Ora, se foram retirados mais de 736 bilhões do orçamento da saúde pública desde 2017 com a Emenda Constitucional do Teto dos Gastos Públicos, se houve o fim dos blocos de investimentos que destinavam verbas específicas para as áreas da saúde no SUS, se houve o fechamento do Departamento de IST /Aids e Hepatites Virais, encerrando uma das política de aids mais reconhecidas do mundo (colocando-nos num departamento de doenças crônicas com fim das políticas de prevenção de IST e nos fazendo disputar orçamento com hansieníase e tuberculose), e se já temos uma demonização do serviço público para que o Deus Mercado assuma através de empresas privadas a saúde…

Se tudo isso já estava acontecendo antes de um governo de extrema-direita, vocês acham que aconteceria o quê, ainda mais diante de uma total desassistência das populações periféricas e o crescimento do pensamento místico neopentecostal, que dá vasão sim a negacionismos? Era uma tragédia anunciada, que foi adiantada e ganhou contornos dramáticos com o coronavírus.

O negacionismo, portanto, também serve a interesses econômicos, a interesses orçamentários para se destruir o SUS e, logo mais, quando a poeira abaixar, os projetos de privatização do SUS por empresas lucrativas (nem mesmo a farsa corrupta das Organizações Sociais é mais usada pelo bolsonarismo) voltará como se nada demais fosse. Além de tampar o fato de que toda nossa soberania nacional na produção estatal de insumos para saúde, de remédios e etc., foi completamente devastada pelo aprofundamento neoliberal que vigorou de modo mais brando no segundo governo Dilma, e que se aprofundou demais com Temer, ganhando o ar nefasto na gestão Bolsonaro.

Estamos diante de um modelo social que se mostra contra a vida de todas as pessoas, e que na verdade elege 4 níveis de pessoas: 1) aquelas que devem viver bem (ou seja, a classe dominante, burguesa, majoritariamente branca); 2) as que devem apenas sobreviver, podendo morrer eventualmente caso perca o poder de consumo (notadamente a classe trabalhadora branca e heterossexual que cada vez mais é precarizada); 3) as que ou devem morrer ou devem viver presa — em territórios militarizados, controlados por milicianos ou num conflito do crime versus polícia, ou em prisões mesmo (a população negra e pobre); e por último 4) as que DEVEM morrer ou ser mortas via de regra, com destaque pra população trans e intersexo.

E a pandemia mostrou muito bem isso: vai ver a cor da maioria das mais de 190 mil pessoas brasileiras que morreram de COVID-19; ou veja a quantidade enorme de LGBTQIA+ e pessoas negras que morrem de AIDS entre a média de 11 mil mortes por ano no país… ou quem passou e está passando fome nesse exato momento que escrevo esse texto. Quais LGBTQIA+ estão fazendo isolamento e quais estão em situação de rua/calçada? São essas indagações que pretendo levar para a Câmara Municipal de São Paulo, mas não só. A disputa social é ininterrupta e necessária.

Isso tudo me faz pensar, então, que estamos numa esquina histórica. Aquele momento que somos confrontades a encarar a seguinte indagação: que modelo social nós queremos para nós e para nossa descendência? É esse modelo social destrutivo, que mata as pessoas ou através do adoecimento em massa, que usa um vírus como arma biológica para empreender genocídio étnico e social? É o neofascismo bolsonarista que queremos deixar de herança? É o ultra-neoliberalismo de Guedes e companhia que pode não parecer tão fascista, mas que mata da mesma forma? Queremos mesmo governadores e prefeitos que fazem bravatas contra o genocida presidente, mas que pouco fizeram para peitar a grande burguesia de suas regiões para parar a economia, e abrir os cofres públicos para subsidiar a quarentena das pessoas?

É muito fácil agora colocar a culpa na população, nos jovens. Da mesma forma como fizeram com o HIV, dizendo que as pessoas se infectavam porque transavam, logo eram culpadas, e principalmente os jovens — esses “arruaceiros promíscuos” que “nada querem com a vida” — , agora temos o discurso semelhante a serviço de esconder a estrutura de todo esse fedor: “jovens arruaceiros no funk”, “aglomeradores que levam o vírus aos mais velhos”, isso quando o negacionismo mais puro já não tomou as rédeas de tudo e ignora a pandemia. Não se fez quase nada no Brasil para se evitar essa tragédia nacional que estamos vivendo diuturnamente há quase um ano. E o pior: tragédia já naturalizada no “novo normal”.

Mas, pra não acharem que estou pessimista, aponto que podemos escolher outro modelo de sociedade, mais socializante das riquezas e que valorize a vida acima dos lucros. Que não sacrifique toda a população para que o 1% mais rico permanecer no topo, pisando em nossas cabeças, sugando nosso sangue seja pelo trabalho precário, seja pela bala da PM, ou seja pela pandemia gerida para a morte… E devemos construir os pilares dessa sociedade desde já, resistindo a todos os ataques ao SUS, ao patrimônio público, aos nossos direitos, à nossa vida…

E além de resistir, partir para cima, lutar, alcançar espaços na disputa social, em todas as áreas sociais. E além disso, empreender uma luta árdua contra o neofascismo e contra o capital. Assim penso que, unides, podemos avançar para um país que produza seringas na pandemia, em vez de continuar produzindo automóveis e a abrir shopping para consumo e aglomeração, e um mundo em que a governança global seja em prol do bem-viver, e não dos lucros.

Será que estou sendo utópica? Com certeza! Sem utopia a humanidade não anda, não se reinventa, e sem sonho o brilho de nosso ser não aparece. Continuo sendo, para sempre, a garota da utopia e dos sonhos, e convido vocês a virem comigo e com tantas outras pessoas a se aquilombar e a ousar a sonhar um mundo do bem-viver, socialista, com outra relação com a natureza. E tudo isso no esperançar ativo, como dizia Paulo Freire, e não na esperança passiva que só espera: mas naquela que constrói no hoje os tijolos do futuro alvissareiro e florido! Axé para nós nesse novo ano de Oxalá e Oxum, com influência de Omolu.

* Carolina Iara de Oliveira é co-vereadora de São Paulo pela Bancada Feminista do PSOL e mestranda em Ciências Humanas e Sociais pela UFABC. Integra a Rede de Jovens SP+ e é uma das co-fundadoras da coletiva Loka de Efavirenz e da Associação Brasileira Intersexo (ABRAI).