“Como você pode ser um artista e não refletir os tempos?”, questionou a cantora e pianista Nina Simone em uma das cenas do documentário What happened, Miss Simone? Tal pergunta me fez pensar sobre a urgência de refletir sobre o tempo, se quisermos lidar estética e discursivamente com o que há de mais subjetivo e concreto no presente.

Sob a égide de uma suposta neutralidade, a medicina e a imprensa ajudaram a construir a muralha do estigma em torno do HIV/aids, principalmente nas décadas de 1980 e 1990. Em contraponto a tais discursos, produções de diversas linguagens artísticas deram espaço para que a doença fosse tematizada longe de uma ótica unicamente biomédica. Tais obras dialogam com o momento histórico de quando foram produzidas. A literatura é um exemplo disto. Alguns romances, poesias e ensaios são capazes de nos fazer compreender sobre as transformações na história do HIV/aids, do início de sua epidemia até os dias atuais.

O clima de medo e desinformação do período pode ser observado em trabalhos do escritor Caio Fernando Abreu, como a novela “Pela Noite” (1983), o livro “Onde Andará Dulce Veiga?” (1990) e “Cartas para além do muro”, conjunto de crônicas em formato epistolar publicado entre 1994 e 1995 no jornal O Estado de São Paulo. Já o escritor e ensaísta Herbert Daniel, importante ativista do movimento social de HIV/aids, fez de suas palavras ferramenta de denúncia contra as violações dos direitos das pessoas vivendo com HIV/aids, como no romance “Alegres e irresponsáveis abacaxis americanos” (1987) e no livro de artigos e ensaios escrito em parceria com o antropólogo Richard Parker, “Aids, a terceira epidemia” (1991).

Encontramos a realidade ficcionalizada da epidemia nos Estados Unidos na obra “Boêmia dos Ratos”, da escritora Sarah Schulman, publicado em 1995. O personagem David fornece uma das falas que mais exemplifica a exclusão social daquele período: “Aqui em Nova York a aids ainda é um segredo. Quando as pessoas realmente adoecem, ficam constrangidas, e, assim, se deitam em suas casas e morrem. Sentem-se derrotadas e ninguém está lá para ajudá-las a descer a escada.”

Destaco outros quatro autores que também produziram narrativas literárias em torno do HIV/aids nos anos 80 e 90: Michael Cunningham nas obras “Laços de Sangue” (1995) e “As horas” (1998); Armistead Maupin na série de livros “Histórias de uma Cidade” e a obra “Ouvinte da Noite” (2000); o escritor cubano Reinaldo Arenas na autobiografia “Antes que anoiteça” (1992); e o escritor francês Hervé Guibert, com sua trilogia autobiográfica “Para o amigo que não me salvou a vida” (1990), “Protocolo da Paixão” (1991) e “O homem do chapéu vermelho” (1992).

Estes e outros tantos autores, diretamente ou não, abordaram o tema a partir de cenários sociais, políticos e culturais de uma época em que a realidade do HIV/aids era muito diferente da que vivemos atualmente, em um momento em que as políticas públicas e os avanços técnico-científicos ainda estavam em desenvolvimento e a morte era quase sempre uma fatídica realidade.

Se no início da epidemia a descoberta de uma sorologia positiva para o HIV era sinônimo de sentença de morte, o surgimento dos antirretrovirais possibilitou que as pessoas vivendo com HIV/aids tivessem uma melhor qualidade de vida e maior expectativa de vida. A intransmissibilidade do vírus por pessoas vivendo com HIV em tratamento e com carga viral indetectável também compõe esse novo cenário provocado pelas novas tecnologias de saúde, retratado nas atuais produções culturais. Portanto, se antes a arte falava sobre um morrer de aids em suas narrativas, hoje é o viver com HIV que se faz presente.

O livro “Tente entender o que tento dizer”, organizado pelo poeta Ramon Nunes Mello, foi publicado em 2018 e tem o mérito de ser a primeira antologia poética voltada exclusivamente à temática a ser publicada no Brasil. Este livro é exemplo de como é possível fazer arte a partir de uma narrativa de vida, contemporânea, que esteja mais em consonância com a atual realidade do HIV do que com as fantasmagóricas metáforas oriundas dos anos 80 e 90. Podemos ver a vida pulsar na poesia de Gabriel Mação, que compõe a antologia: “O que mata não está em mim,/Vem de corações doentes/De quem não se livrou/Dos medos de estimação/E ainda coleciona/Preconceitos nas gavetas/E cabides/Do armário.”

Se é dever do artista refletir os tempos em que vive, então é preciso abraçar o hoje. Já não nos cabe mais o pesado armário do estigma e do preconceito. É preciso criar outras narrativas, ressignificar e complexificar o HIV/aids e denunciar a violência que ainda perpassa os corpos posithivos. Apenas reafirmando a vida é possível contestar a política de morte imposta pelas desigualdades sociais e o estigma.

Leandro Noronha da Fonseca é jornalista e escritor. Graduado em Comunicação Social com ênfase em Jornalismo (2014), especialista em Mídia, Informação e Cultura pelo Centro de Estudos Latino-americanos sobre Cultura e Comunicação (CELACC) da ECA/USP (2019) e integrante do Coletivo Contágio e da equipe de comunicação da ONG Católicas pelo Direito de Decidir. É autor da pesquisa “HIV/Aids e narrativas pós-coquetel na poesia contemporânea brasileira” e da poesia “Promessas vãs de uma rainha”, que conquistou a primeira colocação na categoria “Poesia” do 4º Prêmio Literário Sérgio Farina, realizado pela Prefeitura de São Leopoldo (RS). Também ganhou menção honrosa pelo conto “Dois tigres tristes” no VI Concurso Internacional de Contos Vicente Cardoso, da Prefeitura Municipal de Santa Rosa (RS).