Longe de pretender esgotar o tema, vamos nos ater a alguns aspectos entendidos como de interesse na perspectiva da fundamentação cientifica; todavia, antes de trazer algumas reflexões sobre o tema, é imperativo que se registre mesmo “en passant” a contextualização da pandemia no Brasil.

A “resposta” brasileira frente à pandemia

Não se faz necessário ser um especialista na área para perceber que o Brasil, como poucos países, caminhou na contramão do que cientificamente é recomendado. Em alguns aspectos comportou-se de modo semelhante aos Estados Unidos, no que concerne à condução política da mais alta esfera de governo. E as consequências em ambos os países estão a olhos vistos!  Num primeiro momento, buscou-se imprimir por intermédio do Ministério da Saúde, uma diretriz técnica em consonância com a evidência cientifica e diretrizes da Organização Mundial da Saúde, mas logo se verificou um conflito entre a vertente técnica e o comando político do país, gerando progressivamente um desgaste e a perda da capacidade gerencial e de comando do nível federal, como cabeça do SUS. Consequentemente, caminhou o país para a implantação de um sistema onde estados e municípios, diante do agravamento da situação e da necessidade de se pôr em prática uma resposta do Estado, iniciaram a implementação medidas de controle, passaram a tomar decisões próprias de caráter normativo e de planejamento estratégico, nem sempre as mais adequadas ou apropriadas, que, todavia, implicava, pelo menos um caminho a seguir. Tal quadro não evoluiu de modo mais desfavorável graças à existência do Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde (CONASS) que estabeleceu uma instância de discussão e consultas e, em algumas situações, até mesmo se decidiu pela implantação de câmaras técnicas para, dada a absoluta ausência e inércia  do nível central, oferecer respaldo e aporte científico a determinado grupo de estados, como ocorreu, por exemplo, com os estados do Nordeste.

Esta situação inusitada, que tenha conhecimento, nunca ocorrida no país, pelo menos desde a implantação do SUS, trouxe como consequência imediata a ocorrência progressiva de casos e agravamento dos níveis das taxas de transmissão que ficara próximas a 3 no final de abril e após um período de queda, vê-se mais recentemente um recrudescimento nas taxas de ocupação de leitos hospitalares e na ocorrência de casos e óbitos.

As mensagens contraditórias dentro do próprio governo federal que se soma à mordaça por subserviência ou talvez automutilação do Ministério da Saúde como condutor e gestor do Sistema, são sem dúvida, responsáveis pela ocorrência do grande número de casos e perda de vidas humanas registrados no país. O negacionismo não se limitou apenas à gravidade da pandemia, motivo de chacotas e vilipêndio, mas a esta se somou a disseminação de fake News e “recomendações terapêuticas” não respaldadas cientificamente, numa trágica cópia do vizinho ao norte. Quanto à vacina, graças ao Butantã e à Fiocruz hoje vislumbramos alguma perspectiva de ver iniciar no país o registro dos primeiros eventos. A precariedade no planejamento e seriedade no trato da coisa pública além da ausência de familiaridade com o objeto de trabalho, não só colocou o país à deriva na aquisição de vacinas, mas também dos insumos necessários para esta e outras que compõem o Programa Nacional de Imunizações. A baixa cobertura de testagem, essencial para conhecer parâmetros e tendências da ocorrência da infecção soma-se ao cenário de caos de competência e completa ausência logística: Milhões de testes armazenados tiveram sua validade prorrogada por não terem sido colocados à disposição da rede do SUS!  Esta situação exige uma profunda análise por parte do Congresso Nacional e do Poder Judiciário com vistas a uma definição legal de responsabilidades e adoção de medidas cabíveis, à luz da Constituição.

Pessoas Vivendo com HIV e Vacinas contra o COVID

Antes de discorrer sobre esse tema, é mister ressaltar que apesar da grave crise econômica que enfrenta o país, a provisão dos medicamentos necessários ao tratamento dos pacientes de aids, como já ocorreu em outros períodos de crise, se manteve segundo parâmetros tradicionais, tanto na aquisição das drogas que compõem o elenco terapêutico como no abastecimento da rede. Este é um aspecto essencial na manutenção de condições mais favoráveis a estes pacientes no enfrentamento da pandemia, seja do ponto de vista psicológico e emocional ou da resposta imunológica necessária para a manutenção de determinado nível de higidez daqueles sob tratamento.

Há pelo menos três aspectos a serem considerados ao se analisar a condição de viver com o HIV e a vacinação contra a covid-19, a saber:  1- Da condição de vulnerabilidade e risco para a COVID-19;  2- Da pertinência da vacinação das pessoas que vivem com o HIV; 3-Da eficácia dos produtos atualmente disponíveis.

1- Da condição de vulnerabilidade e risco para a COVID-19

De modo semelhante a determinados segmentos sociais, pessoas vivendo com HIV podem apresentar  condição de alta vulnerabilidade à SARS-COV-2. Este segmento populacional poderia ser dividido em três grandes grupos:

a- Aqueles que fazem regularmente seu tratamento, não apresentam resistência, têm níveis de CD4 menor que 50 e não sofreram intercorrências recentemente;

b- Os que apresentam as condições anteriores e CD4 entre 50-200, mas foram acometidos de intercorrências

c- Pacientes sob tratamento com contagem de CD4 satisfatória, sem intercorrências recentemente e não se enquadram no grupo etário elegível para vacinação mais precoce.

Aos grupos a e b se recomenda a vacinação prioritária, ou seja, que ocorra entre os primeiros grupos elegíveis.  Alguns países os incluíram na segunda ou terceira etapa. Aqueles do grupo c, diante das circunstâncias de escassez de vacina e uma gama de indivíduos sob maior risco, não necessariamente devem ser incluídos nas etapas iniciais.  É redundante registrar que as medidas preventivas usuais devem ser rigorosamente aplicadas a todos, mesmo após a vacinação.

2- Da pertinência da vacinação das pessoas que vivem com o HIV

É indiscutível a pertinência e necessidade da vacinação das pessoas que vivem com HIV, como dos demais segmentos prioritários. Não há qualquer contraindicação e as vacinas atualmente disponíveis não apresentam qualquer risco; há registro de coortes que incluíram pessoas vivendo com HIV entre seus voluntários, a da Oxford, por exemplo, sem registro de qualquer intercorrência que fugisse do parâmetro observado entre outros voluntários negativos para o HIV.

Vale ressaltar que boa parte das vacinas atualmente conhecidas utilizaram tecnologia inovadora na sua produção. Por exemplo, a da Biotech, m-RNA,  que contém pequenos fragmentos inofensivos do vírus COVID-19 permitindo às células imunológicas aprendizagem de como reconhecer e reagir frente ao vírus. Diante de uma situação real, as células já se encontram devidamente “instruídas”. )

A Oxford-Astra-Zenica (Fiocruz) tem como técnica a introdução de DNA dentro de um adenovírus. Foi utilizada uma versão modificada de um adenovírus de chimpanzé, conhecido como ChAdOx1, que tem a capacidade de entrar nas células, mas não se replicam dentro delas.

As vacinas tradicionais usam organismos causadores de doenças, enfraquecidos ou inativados, para promover a resposta imune, em caso de exposição futura a um determinado agente infeccioso.

A vacina produzida pelo Butantã, por exemplo usa a tecnologia tradicional.

3-Da eficácia dos produtos atualmente disponíveis

Os diversos estudos publicados revelam alta eficácia para as diversas vacinas que já completaram a fase 3 de pesquisa, principalmente no aspecto essencial: A proteção contra formas graves da doença. 

* Pedro Chequer é médico epidemiologista e ex-diretor do antigo Programa Nacional de Aids.