Penso que a vitória de Joe Biden e Kamala Harris para a presidência e vice-presidência dos Estados Unidos, respectivamente, tem um significado político amplo que é preciso sublinhar antes de falar das potenciais mudanças das políticas especificas com relação ao HIV/aids e aos direitos LGBTTI.

A transformação que a vitória Biden-Harris significa não vai acontecer imediatamente, pois a administração Trump promoveu a destruição de políticas anteriores de maneira sistemática e infletiu de maneira radical políticas internas e externas americanas, no sentido de uma agenda hiperconservadora, muito extensa. Essa agenda teve,  internamente, como alvo principal o direitos das pessoas trans e o direito ao aborto  que também se traduziu para o plano internacional, sendo disso exemplo a Declaração Genebra lançada no dia 22 de outubro, da qual o governo brasileiro foi também iniciador (confira em https://bit.ly/38tdQ8O e https://bit.ly/3n13HUV . O governo Trump também ameaçou, com apoio de governos conservadores latino americanos inclusive o Brasil, a  integridade do Sistema Interamericano, que é fundamental para proteção dos diretos humanos nas Américas. E, como Brasil, Polônia e Hungria iniciou uma aliança global de defesa da liberdade religiosa, cuja pauta, de fato, ameaça o secularismo e a laicidade, já muito combalidos no mundo (confira em https://bit.ly/3mZ1Os3 ) .

O fato de que o governo americano não vai mais exportar essas proposições e ideias como tem feito de maneira sistemática e intensa, desde 2016, desanuvia o ambiente da política sexual e de gênero o mundo inteiro. Como foi debatido em recente conversa na live organizada pela Agência de Notícias da Aids com a ABIA (https://bit.ly/3l7GTSY ), a vitória de Biden-Harris, sobretudo, pode desacelerar as tendências de desdemocratização visíveis em todas as regiões do mundo, incluindo o Brasil, um exemplo particularmente catastrófico.   E, considerando a adesão plena do governo Bolsonaro – na verdade podemos dize submissão a essa pauta –  a eleição de Biden -Harris pode também ter, no médio prazo, um efeito desanuviador no que diz respeito ao ativismo diplomático ultraconservador do governo brasileiro nas arenas internacionais de debate, especialmente a Organização das Nações Unidas (ONU).  E penso que também é preciso mencionar, como fez Richard Parker no seu comentário na reportagem publicada pela Agência de Notícias da Aids (https://bit.ly/2IeGUGC ), o retorno dos EUA ao Acordo de Paris sobre mudança climática e o potencial impacto positivo a eleição Biden-Harris sobre a destruição piromaníaca do governo Bolsonaro, especialmente de Ricardo Salles.

Quanto às políticas específicas anunciadas pela campanha Biden – Harris, elas não só são adequadas como entendo que foram resultado de consultas amplas junto às comunidades diretamente afetadas: pessoas vivendo com HIV e pessoas LGBTTI. No que diz respeito a esse âmbito, reitero que o mais urgente é alterar o clima transfóbico e restrições impostas pelo governo Trump aos direitos de identidade de gênero.  Além disso, em junho, a Suprema Corte tomou decisão muito importante proibindo a discriminação de pessoas LGBTTTI no mercado de trabalho, cuja implementação deve ser acelerada pela mudança de governo, isso também é positivo.  Certamente teremos desdobramentos importantes no campo do direito ao aborto, um tema que que, lamentavelmente, não é muito debatido pelos movimentos HIV-AIDS. Essa será uma pauta árdua na medida em que um dos legados nefastos de Trump foi a indicação para a Corte Suprema de uma juíza ultracatólica e radicalmente contrária à interrupção da gravidez. Mas pelo menos a agenda antiaborto não terá respaldo do Executivo Federal. Finalmente, eu não sei o que está no programa do Biden sobre os direitos das trabalhadoras sexuais, inclusive com relação ao HIV.  Mas estou certa que também se ampliou o espaço para essa comunidade manifestar suas demandas de descriminalização e reconhecimento do trabalho sexual como trabalho.  Ou seja, temos boas razões para comemorar, mesmo quando sabemos que haverá muitos obstáculos no percursos que agora se inicia.

 

Sonia Corrêa, co-coordenadora do Observatório de Sexualidade e Política (SPW, sigla em inglês), secretariado pela Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids ( ABIA)