O desafio lançado pela Agência Aids, escrever sobre o “Outubro Verde” e a “Semana Paulista de Mobilização contra a Sífilis Congênita” com o coração. Este pedido foi inusitado, porque sempre trabalhamos com muita paixão e o coração no Programa Estadual de IST/Aids, mas escrevemos ou falamos muito “tecniquês”. O desejo de eliminar a sífilis congênita começou há muitos anos, na década de 90, com iniciativas da Organização Pan Americana da Saúde e Organização Mundial da Saúde (OPAS/OMS) e, em São Paulo, com o nosso saudoso Dr. Osvaldo Moura Ferreira do Centro de Vigilância Epidemiológica Professor Alexandre Vranjac.

A sífilis congênita ficou esquecida por muitos anos, embora a sua notificação fosse obrigatória desde 1986, junto com a aids, sempre foi um agravo negligenciado e sub-registrado nos sistemas de informação de saúde. Em 2007, o Ministério da Saúde lançou o “Plano Operacional para Redução da Transmissão Vertical do HIV e da Sífilis” e, neste mesmo ano, São Paulo promoveu um Fórum Estadual com mais de 500 participantes e divulgou o “Plano Estadual para Eliminação da Transmissão Vertical do HIV e da Sífilis Congênita” com diversas ações para o enfrentamento destes dois agravos. O slogan era: “Eliminar a sífilis congênita e reduzir a transmissão vertical do HIV: um compromisso de todos nós”. Na ocasião, quem estava à frente da coordenação das ações de eliminação da transmissão vertical do HIV e da sífilis era a nossa querida colega Dra. Luiza Harunari Matida. Uma incansável batalhadora nessa luta, Luiza sempre comentava “precisamos carregar a gestante no colo” para eliminar a sífilis congênita.

A meta era eliminar a sífilis congênita, atingindo uma taxa de 0,5 casos para cada mil nascidos vivos, e reduzir a transmissão vertical do HIV. Hoje estamos eliminando a transmissão vertical do HIV, com certificação de alguns municípios como o de São Paulo e iniciando lentamente um processo de redução da sífilis congênita no nosso Estado.

A sífilis congênita é uma doença totalmente prevenível, desde que o diagnóstico seja precoce e o tratamento oportuno, ou seja, realizado nas primeiras semanas de gestação. Os exames diagnósticos e o tratamento para a sífilis são de baixo custo e disponíveis nos serviços de atenção primária a saúde. E aí vem a pergunta: “Por que ainda temos sífilis congênita?”. Infelizmente, porque ainda temos falhas nos processos de trabalho. Falhamos quando colocamos barreiras no acesso ao pré-natal, quando não ofertamos os testes diagnósticos no 1ª e no 3º trimestres de gestação, quando não aplicamos a penicilina nos serviços de atenção primária à saúde ou quando deixamos de tratar as parcerias sexuais das gestantes.

O pré-natal é um momento muito importante para a gestante cuidar da sua saúde e da saúde do seu bebê. Pré-natal também é papo de homem e o parceiro da gestante deve ser envolvido, acolhido e estimulado a participar das consultas e realizar exames para garantir a saúde do casal e do bebê. Atualmente, o pré-natal do homem está disponível nos serviços de atenção primária à saúde.

No final de 2015, ao mesmo tempo em que acontecia a expansão da implantação de teste rápido para o diagnóstico da sífilis na atenção básica, o Brasil foi atingido pelo desabastecimento mundial da penicilina benzatina, principal medicamento para o tratamento da sífilis adquirida. Como eliminar a sífilis congênita sem tratamento materno adequado? A penicilina benzatina é a única droga que atravessa a barreira transplacentária e trata o bebê intraútero. Na ocasião, o Programa Estadual de IST/Aids de São Paulo precisou priorizar o uso da penicilina benzatina para o tratamento de gestantes com sífilis, pois era a população mais vulnerável e com maior risco de abortamento e natimortalidade, caso o tratamento adequado não fosse instituído.

Para piorar a situação, em 2016, ainda tivemos o desabastecimento da penicilina cristalina e, em seguida, da procaína, medicamentos fundamentais para o tratamento dos casos de sífilis congênita. Como pediatra confesso que este período foi um dos mais estressantes que vivenciei. No auge desta crise, buscamos parceria com a Sociedade de Pediatria de São Paulo (SPSP), pois seria necessária a procura por terapias alternativas para o tratamento dos recém-nascidos, numa situação extrema de esgotamento total dos estoques de penicilina. No nosso primeiro encontro, faltavam 15 dias para o Congresso Paulista de Pediatria da SPSP e a sugestão de uma mesa sobre o tema sífilis congênita foi bem acolhida. No dia do evento a sala ficou lotada e muitos pediatras não conseguiram assistir a apresentação, evidenciando a necessidade de falar mais sobre sífilis congênita com estes profissionais. Este fato, contribuiu para o lançamento do “Outubro Verde”, uma iniciativa da SPSP com o Programa Estadual de IST/Aids de São Paulo e com a Associação de  Ginecologia e Obstetrícia do Estado de São Paulo (SOGESP). Foi chamado de “Outubro Verde” porque utilizamos a cor verde especialmente para destacar a sífilis congênita e a importância de sua eliminação. O evento ocorre anualmente e, no dia 1º de outubro de 2020, foi realizado o “5º Outubro Verde”.

Ainda, em 2016, foi instituída a Semana Paulista de Mobilização contra a Sífilis Congênita, pela Coordenação Estadual de Infecções Sexualmente Transmissíveis e Aids em conjunto com a Atenção Básica da Secretaria de Estado da Saúde e o Conselho de Secretários Municipais de Saúde (Cosems) do estado de São Paulo. Esta iniciativa constituiu um marco importante para consolidar as estratégias direcionadas à redução da sífilis congênita no estado de São Paulo. A Semana Paulista acontece em Outubro porque foi o mês escolhido para simbolizar a luta contra a sífilis. Além disso, em 2017, foi sancionada a Lei Nº 13.430, de 31 de março, instituindo o “Dia Nacional de Combate a Sífilis e a Sífilis Congênita”, comemorado no terceiro sábado do mês outubro.

A Semana Paulista é realizada há cinco anos e, a cada ano, tem um tema em destaque. Neste ano, estaremos realizando a 5ª Semana Paulista de Mobilização Contra a Sífilis Congênita, com o tema: “Os desafios da sífilis congênita em tempos de Covid-19”.  O evento tem contribuído para manter o compromisso político com a saúde pública, pautando, anualmente, nas agendas de gestores públicos a prioridade na prevenção, diagnóstico precoce e tratamento oportuno da sífilis na gestação com vistas à eliminação da sífilis congênita. Participam da Semana Paulista os secretários municipais de saúde, coordenadores de programas de infecções sexualmente transmissíveis e saúde materno-infantil, gestores e profissionais de saúde da rede pública, privada e da saúde suplementar, além de estudantes e representantes da Sociedade Civil.

Em 2018 e 2019, durante a realização do evento, o Programa Estadual de IST/Aids concedeu o “Prêmio Luiza Matida” para municípios que obtiveram bons resultados nos indicadores selecionados para a redução da sífilis congênita. Foram premiados 22 municípios durante a realização da 3ª Semana Paulista de Mobilização Contra a Sífilis Congênita e 23 municípios na 4ª Semana Paulista.

No estado de São Paulo, positivamente, o número de casos de sífilis congênita deixou de apresentar crescimento. Nos últimos três anos, ainda que de forma lenta, vem apresentando pequena redução, passando de 4.141 casos em 2017 para 4.013 casos em 2019, ou seja, 128 crianças a menos na estatística da doença. Os dados refletem estabilidade na taxa de incidência, em torno de 6,9 casos por mil nascidos vivos, em 2019. Por outro lado, a taxa de detecção da sífilis em gestantes, continua em ascensão, indicando a capacidade da rede assistencial em diagnosticar e tratar as gestantes com sífilis, principalmente durante o pré-natal. Em 2019, foram diagnosticadas 12.676 gestantes com sífilis, com uma taxa de detecção de 22 casos para cada mil nascidos vivos. Cerca de 90% dessas gestantes receberam tratamento adequado durante o pré-natal. Quanto mais mulheres com sífilis forem diagnosticadas e tratadas, durante o período gestacional, menor será o número de crianças nascidas com sífilis congênita.

A articulação de ações conjuntas entre o Programa Estadual de IST/Aids, Atenção Básica e Programas materno-infantil tem contribuído para o fortalecimento dos municípios, especialmente na assistência pré-natal,  no enfrentamento da sífilis. A eliminação da sífilis congênita requer um trabalho conjunto, com qualificação e atualização constante de profissionais da rede de cuidados materno-infantil; implementação das linhas de cuidado com integração de Programas de IST/Aids, Atenção Básica e maternidades; participação das Universidades, das Sociedades e Conselhos de Classes, da rede pública e de saúde suplementar  e da sociedade civil. Além disso, é primordial vontade política, com envolvimento de gestores na priorização de políticas públicas que possam levar a grandes mudanças no cenário atual.

Série histórica da Semana Paulista de Mobilização contra a Sífilis Congênita:

  • 2016: 1ª Semana Paulista de Mobilização contra a Sífilis Congênita: “Um problema de todos nós”
  • 2017: 2ª Semana Paulista de Mobilização contra a Sífilis Congênita: “Juntos podemos mudar esta realidade”
  • 2018: 3ª Semana Paulista de Mobilização contra a Sífilis Congênita
  • 2019: 4ª Semana Paulista de Mobilização contra a Sífilis Congênita: “Diagnosticar e tratar a gestante com sífilis reduz a sífilis congênita”
  • 2020: 5ª Semana Paulista de Mobilização Contra a Sífilis Congênita: “Os desafios da sífilis congênita em tempos de Covid-19”

Utilizamos por vários anos mensagens para colocar a sífilis congênita em evidência, como: “Um problema de todos nós” ou “Um compromisso de todos nós”. Se todos já sabiam do problema, por que ele ainda existia? Precisávamos de mudanças e como o problema poderia ser vencido?  Em 2016, um novo slogan foi veiculado com uma mensagem de esperança: Sífilis congênita “Juntos podemos mudar esta realidade”

* Dra. Carmen Domingues é médica pediatra com especialização e mestrado em Ciências na área de Saúde Pública pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. Atualmente coordena aa ações para eliminação da transmissão vertical do HIV e sífilis no Programa Estadual DST/Aids de São Paulo.