Quando pensamos na possibilidade do Fim da Aids, constantemente anunciada, não como uma realidade, mas como algo almejado por todos, faz-se necessário evocar uma reflexão sobre o momento atual que passamos no Brasil. Sabemos que não há uma pílula mágica (BIEHL, 2011) que nos leve para o fim da aids e que há um caminho longo até chegarmos a esse objetivo (PARKER, 2015). Não há uma receita ou um caminho único para vencermos a Aids no Brasil e no mundo como um problema de saúde pública.

Entretanto, precisamos reconhecer que já percorremos um longo percurso e que se não há um caminho único, existem pistas de como esse trânsito pode fluir melhor. A história nos mostrou algumas políticas bem sucedidas que são muito valiosas para que alcancemos esse feito: como valorização dos direitos humanos das populações mais afetadas pela epidemia e garantias sociais básicas para pleno exercício da cidadania.

A solidariedade política mostrou que é possível construir realidades mais saudáveis e pacíficas. O Unaids (2020) acerta quando prioriza o enfrentamento das iniquidades como algo central na resposta global ao HIV e à aids. Precisamos garantir o acesso de todas as pessoas aos direitos básicos para exercício da cidadania plena, como direito a medicamentos, acesso a água potável, educação, saúde, assistência social e moradia.

Precisamos resgatar nossa parte mais profunda que nos conecta com o que somos: nossa humanidade. Para adentrarmos nos aspectos mais sutis da expressão humana precisamos reaprender a sermos humanos. Nesse sentido, a garantia dos direitos humanos pode ser um primeiro passo para o alcance do sonhado fim da AIDS. Podemos começar em nós esse processo, dentro de nosso próprio movimento, nos tratando com mais humanidade, respeito e paz. Precisamos aprender a nos escutar, olhar e conseguir enxergar o outro para além de nossas projeções e medos.

O tempo em que vivemos impera uma nova conexão e humanidade que já ensaiamos no passado através da mobilização afetiva, quando por exemplo mulheres lésbicas acolhiam mulheres trans, travestis e gays expulsas de casa por terem HIV. A mobilização afetiva vem antes da mobilização social. A força dessa solidariedade afetiva (e também política) foi capaz de transformar a forma como respondemos a epidemia, e foi uma das bases para que tenhamos acesso a medicamentos para todos de forma solidária através do SUS (Sistema Único de Saúde). Para alcançarmos a prática dessa nova/antiga forma de mobilização (que chamo de afetiva) é preciso morrer e renascer simbolicamente para reaprender a sentir. Assim, a arte pode ser um generoso caminho.

Nossa sociedade está doente e violenta. Nos últimos anos as apostas nas armas e na violência como caminho só nos destruiu. Nos entristecemos diariamente com as notícias que afetam nossas esperança de um futuro melhor: nossas crianças e adolescentes em situação de extrema violência. Isso é inaceitável. Precisamos resgatar nossa humanidade, ter empatia, sentir e expressar amor, pois esses pilares são básicos para uma real transformação solidária.

Precisamos embarcar numa grande mobilização afetiva e artística para salvarmos nós mesmos de nós mesmos. Por fim, é urgente garantir que todas as pessoas no mundo tenham acesso à medicamentos, à cidadania plena, à igualdade de direitos, aos alimentos e às melhores sementes para uma nutrição de qualidade. Como nos lembra Herbert de Souza (o Betinho), “quem tem fome tem pressa” e as necessidades básicas de nutrição devem ser garantidas para todas as pessoas. É preciso fazer a sociedade acordar. A resposta a Aids tem muito a nos ensinar a ser mais humanos. Que tenhamos a humildade e a grandeza de aprender.

Referências

BIEHL, J. Antropologia no campo da saúde global. Horiz. antropol., Porto Alegre , v. 17, n. 35, p. 227-256, June 2011 . Available from <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-71832011000100009&lng=en&nrm=iso>. access on 26 Apr. 2018. https://dx.doi.org/10.1590/S0104-71832011000100009.

PARKER, Richard. O fim da AIDS? ABIA, 24/09/2015 Disponível em: https://abiaids.org.br/o-fim-da-aids/28618 Acesso em 02/04/2023

UNAIDS. 2020 global aids update — seizing the moment — tackling entrenched inequalities to end epidemics, [acessado 2020 jul 21]. disponível em: https://www.unaids.org/en/resources/documents/2020/global-aids-report

* Salvador Corrêa é psicólogo, sanitarista e ativista.