No início dos anos 2000 um dos diretores do Hipupiara, ONG que dirigi por quinze anos, pediu afastamento da instituição para se dedicar à igreja neopentecostal à qual pertencia, a Universal do Reino de Deus. Pouco tempo depois chegou a nosso conhecimento que ele estaria dando seu testemunho de que teria sido curado da AIDS pela força da fé e que não precisava mais tomar medicamentos.

Coincidentemente, ou não, pouco tempo depois eu o encontrei retirando seus remédios no serviço de saúde de São Vicente, com a maior cara de pau. Lógico, o tempo fechou e nunca mais o vi, pois o mesmo havia transferido seu tratamento para outro município. Pois não é que esta semana a Universal conseguiu outro feito semelhante?

A igreja em questão publicou em suas redes sociais que um casal teria sido curado pela Corrente dos 70, pois o mesmo não queria ser ‘escravo dos medicamentos e dos preservativos’ e teria optado pela solução espiritual. Longe de mim desacreditar do poder da fé na melhoria de quadros delicados de saúde, afinal, eu sou ungido pelo poder do bom humor, uma espécie de fé cuja oração sempre promoveu maravilhas (e muitas risadas) nos centros de tratamento por onde passei, e olha que foram muitos. Mas o casal em questão teria sido curado e agora estaria livre de tratamento e da necessidade de prevenção, dispensando o uso de preservativos. Imagino o grau de proximidade entre eles e Deus para serem curados entre milhares de pessoas com HIV que frequentam a mesma denominação religiosa. Não deveriam ser mais frequentes os casos de cura religiosa?

Não é a primeira falcatrua que esses ‘donos de Deus’ realizam, em 2015 a mesma igreja foi condenada a pagar R$300 mil de indenização a um fiel que foi supostamente abraçado pelo poder do Espírito Santo e estimulado pelos pastores a interromper o tratamento e parar de usar preservativos, o que teve como consequência a contaminação da esposa pelo vírus HIV. Seria de utilidade pública que esse casal que agora se diz curado se submetesse aos testes de HIV no SUS e que fossem confrontados com os que detectaram a presença do vírus anteriormente. Caso seja comprovado o ‘milagre’, serei o primeiro a integrar a legião dos ‘Gladiadores do Altar’, afinal, também estou cansado de tantos remédios que venho tomando há 32 anos e adoraria me ver livre disso tudo.

Um filme bastante revelador da conduta desses charlatões é ‘Fé demais não cheira bem’, com o brilhante Steve Martin vivendo um pastor que vagueia por regiões empobrecidas dos EUA com seu circo de fé itinerante, forjando milagres e amealhando o sofrido dinheiro daquela população extremamente vulnerável a esse tipo de praga. Praga que foi recentemente expulsa de países africanos que não suportavam mais tanta mentira em nome do Senhor, retirando o pouco dinheiro de seus povos. Reafirmo, tenho profundo respeito pelo poder da fé, sou testemunha de muitas orações feitas por minha mãe a Santo Expedito e Nossa Senhora nos momentos mais críticos por mim enfrentados e estou aqui, vivo, lindo e agora loiro. Mas ainda vivo com HIV e contra ele só existem três comportamentos que, se combinados, produzem maravilhas: informação, tratamento e prevenção.

Fé demais nunca cheirou bem…

* Beto Volpe é ativista e escritor.