Em setembro, antes de eu assumir [finalmente] minha identidade como travesti intersexo, eu escrevi um artigo para a Agência Aids de nome “ HIV/aids, juventudes desamparadas, ativismo adoecido: como resistir em tempos de política da morte?”. Quando me convidaram para escrever esse texto para o dia da consciência negra, eu fiquei pensando: mas o que vou escrever? Tudo o que me angustia estava já naquele texto, que recomendo inclusive que leiam. Como escrever sem me repetir?

Eis que, então, uma mensagem me chega no Whatsapp, num grupo de direitos humanos trans: 106 pessoas trans assassinadas (103 travestis e mulheres trans) até dia 15/11, e dessas mortes 80% são de pessoas negras. Os dados são reais, não é fake news, e tem como base um levantamento da ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais). Angela Davis, Lélia Gonzalez, Patricia Hill Collins, e todas essas autoras que falam do entrecruzamento de raça, classe social e gênero me vieram à cabeça no mesmo instante. Transfobia também é algo que está inserido na raça, no racismo. Fora as incontáveis mortes de pessoas trans e pessoas negras pela aids e outras doenças tratáveis como a tuberculose e a pneumonia, que também matam demais a população negra…

Daí continuei navegando no zap, e outra mensagem, agora num grupo de militância em saúde pública. Uma notícia sobre o fim do DPVAT, o seguro obrigatório pago por proprietários de carros que, além de indenizar vítimas de acidentes de trânsito (um das maiores causas externas de mortalidade no país), também financia o Sistema Único de Saúde (SUS). Pensei comigo: devo ir nessa pegada. O seguro DPVAT garantiu ao SUS entre 2008 e 2018 cerca de R$33,4 bilhões, e ele foi simplesmente extinto pelo facínora que chamamos de presidente sem nenhuma consulta popular ou ao menos ao Congresso Nacional.

Além das pessoas que deixarão de ser indenizadas, o SUS leva uma mordida num momento em que aumenta-se a incidência de HIV, de Sífilis, de outras infecções sexualmente transmissíveis (IST), a volta do sarampo endêmico, da rubéola e até da difteria. A tuberculose também apresenta números alarmantes e podem se preparar para, no próximo ano, ter de enfrentar uma epidemia de raiva (isso mesmo, aquela doença do cachorro), conforme me alertou há algumas semanas a bióloga e ativista Maria José Menezes do Núcleo de Consciência Negra da USP, pois esse ano NÃO HOUVE vacinação sistemática pelo SUS dos animais domésticos para se evitar a propagação da raiva.

Vocês acham que tal conjuntura é pra quê? Pra nos manter vivas e saudáveis eu acho que não. Mas há um bate-assopra, não é mesmo? Até porque nós não paramos de nos mover, de lutar, de sonhar, e de nos revoltar. A população ameríndia do Equador está fazendo barricadas contra tanques e estado de exceção. A população do Chile não sai das ruas, mesmo com estupro, tortura, cegueira provocada por armas, e infindáveis violências institucionais do Estado e dos capitalistas. Nós também botamos medo, mas ainda não conseguimos virar o jogo e parar de verdade com a política da morte, a necropolítica que Mbembe tanto nos fala e Francilene Cardoso nos materializa com explicações na economia política, no “fazer dinheiro e lucro” para poucos.

Para avançar o ultraneoliberalismo, já houve um passo de ataque no SUS que vai atingir em cheio a população negra e pobre: a vinculação dos repasses de verbas da saúde levando em conta o número de cadastrados no SUS, e não mais levará em conta a população geral das regiões. Na prática o governo federal está acabando com a universalidade do SUS, e isso não tem outro nome: é assassinato, é GENOCÍDIO.

Além desse crime, Paulo Guedes e sua equipe pretendem entregar, com laçarotes de papel de trouxa, para o Congresso Nacional a Emenda Constitucional do Pacto Federativo, que se juntará ao Teto dos Gastos Públicos, à Reforma Trabalhista, à Reforma da Previdência e tirará todo e qualquer direito (que já é pouco) da população. Eles querem submeter os direitos básicos que temos como saúde pública, educação, assistência social, previdência, tudo “às condições fiscais do país”, usando um eufemismo, um disfarce para não dizer que vão abrir brechas para que, a qualquer momento, nossos direitos sejam suspendidos, que hospitais fechem, que o SUS deixe de existir. Além disso, a Emenda tira a obrigação constitucional de os governos promoverem ações que reduzam as desigualdades regionais e de classe social do país, para perpetuar uma situação de opressão e precarização regional do Norte e Nordeste, regiões onde a população predominantemente é negra e indígena. Há racismo ambiental, meus amores.

Estamos comemorando essa semana a resistência negra no Brasil, a resistência diaspórica de um povo sequestrado na África e trazido para cá para ser escravizado e vilipendiado juntamente aos povos indígenas. É dia 20, porque é aniversário de Zumbi, porque é para construir sempre a memória da resistência e luta dos palmarinos, daquelas e daqueles quilombolas que ficaram por quase um século formando uma sociedade paralela, negando a escravatura como sistema e se autodefinindo como livres e detentores de sua própria produção material, e já sabemos desde 1990 através de Patricia Hill Collins que não há insurreição e revolta possível sem oportunidades históricas concretas e a autodefinição individual e coletiva, como alguém que tem direito a ter direitos. Do direito de existir, e de ser livres, tendo aqui a liberdade como um conceito indivisível, coletivo, amplo, e como motor de uma luta constante e indivisível, como diz Angela Davis.

Mas não há romantismo aqui: apesar dos avanços, paira sobre nós o genocídio das populações negra, pobre e indígena. Como diz Luedji Luna na música “Um corpo no mundo”: “olhares brancos me fitam, há perigo nas esquinas”. Comemoramos que mais da metade das alunas e alunos das universidades federais são negras e negros, mas estamos cortando todo o investimento na educação pública com o desgoverno que se pretende fascista. Estamos nos felicitando por ter diminuído a mortalidade por aids nos últimos vinte anos, cerca de 42% de diminuição, mas por que ainda 60,3% das mortes por aids do ano passado foram de pessoas negras, o que representou 6.699 mortes em 2017? A diminuição vem só para a população branca e de classe média, é isso? Até quando vão nos enrolar?

Sem contar nos helicópteros policiais do Rio de Janeiro, atirando no povo da favela, fazendo crianças negras desenharem os helicópteros como um verdadeiro bicho papão assassino, ou as clássicas chacinas daqui de São Paulo, onde se matam vários jovens pobres e negros de uma só vez, sem perguntar, sem inquirir… Nada disso. Mata-se! Encarcera-se! Deixe que “se matem” dentro de prisões que são verdadeiros depósitos de moer gente, campos de concentração da contemporaneidade. E agora, o que devemos fazer? Como responder ao aumento do HIV na população negra e LGBTI+? Como diminuir o adoecimento por aids? Como garantir que o SUS não morra na mão da equipe econômica do governo, em nome de “saúde fiscal”? Será que pagaremos com nossas vidas posithivas o tal “equilíbrio fiscal”, que transfere dinheiro nosso para o pagamento dos juros da dívida pública para o mercado financeiro?

Acho que nossos vizinhos latino-americanos já nos mostraram o caminho. Não há mais diálogo possível na institucionalidade. A resposta que precisamos dar é coletiva, é de grupos organizados da sociedade civil fazendo pressão nas ruas, nas diversas militâncias, nas artes, nas mídias, enfim, em todos os espaços. Precisamos empretecer as políticas desse país, e fazer uma onda negra, trans, progressista, invadir a conjuntura nacional, para que nossos direitos sejam garantidos, mas não só: devemos construir uma nova sociedade, sem essas estratificações sociais assassinas, sem racismo, sem capitalismo.

E eu vou concluir esse texto com o último parágrafo do texto que citei no início, o artigo anterior que mandei pra Agência Aids:

“Eu penso que utilizar a interseccionalidade, a análise da realidade através de uma ótica anticapitalista, e que reconheça o tripé de exploração/opressão de raça, classe e gênero, é importantíssimo para trilharmos caminhos mais proveitosos na aids com as juventudes. Devemos seguir, com toda certeza, o conselho de Patrícia Hill Collins, de usar a interseccionalidade como um instrumento em busca da liberdade e da emancipação (do racismo, do capital, do patriarcado). Enquanto continuarmos com uma visão hegemônica de resposta à aids que foca na doença e nos processos biomédicos de forma apartada da sociedade, trabalho, política, economia e da cultura, não haverá solução possível esta epidemia global. Somente uma análise e práxis interseccionais poderão criar caminhos possíveis para o controle da aids”.

* Carolina Iara de Oliveira é uma travesti intersexo, negra, que vive com HIV/aids. É escritora, mestranda em Ciências Humanas e Sociais na Universidade Federal do ABC (UFABC) e assistente de políticas públicas na prefeitura de São Paulo. Atua como ativista no coletivo Loka de Efavirenz, na Rede de Jovens São Paulo Positivo, na Associação Brasileira de Intersexos e na Resistência/PSOL.